2020

domingo, 27 de dezembro de 2020

Sobre a lembrança do Natal passado e o silêncio que faz chorar



Enchi meu mês de dezembro com Peanuts, Quebra-Nozes, todo tipo de coisas vermelhas e verdes e luzinhas de led. Ainda assim sinto que deveria ter aproveitado mais o Natal este ano, porque desde que minha mãe voltou para o interior nesta manhã de domingo eu não paro de olhar para a casa vazia e chorar. A tarde de ontem foi tão boa (apesar do momento em que senti que desmaiaria se passasse mais 3 segundos em frente à TV) porque ficamos o tempo todo vendo uma seleção de filmes de Natal enquanto ela se oferecia para fazer drinks coloridos com corote. Nossa noite terminou com cerveja, pimenta mexicana e mais cinema. 

No dia de Natal dedicamos grande parte do tempo aos VHS antigos gravados pelo meu pai nos anos 90', enquanto brincávamos com os "53" animais em casa (entre os gatos dela e os meus cachorros) e ríamos com as lembranças dos nossos amores que já não estão mais aqui (essas datas me trazem uma melancolia tão grande, e dessa vez julguei que mais efetivo do que criar memórias, seria revivê-las). 

Eu não sei se minha crise contínua de choro vem do fato de eu ter vivido um ano de m*rd@ e percebido o quanto eu estava sozinha sem o colo da minha mãe, ou o desespero de voltar para um mundo totalmente diferente do qual eu vivi durante os últimos quatro dias protegida em casa.

Enquanto tento descobrir, fico aqui tão incomodada com o silêncio a ponto de ligar a TV no mesmo canal que assistimos ontem pra ver outro filme de natal (é, daqueles que eu não aguentava mais menos de 24 horas atrás), derramando lágrimas a cada gole do copo com batida de menta repousado na toalha de mesa de Papais Noéis.

Que época mais triste.

domingo, 22 de novembro de 2020

Sobre amores platônicos de escritório



Havia algo nele que já falava comigo desde que nos conhecemos - ou muito pouco depois disso.

Recordo-me de como me senti identificada com ele quando soube que tocava em uma banda de rock - e do meu esforço durante a festa de fim de ano do escritório para fazê-lo perceber que tínhamos isso em comum quando rolou um som dos anos 80.
A mesma coisa aconteceu quando vi em sua mesa um CD do Whitesnake e mencionei o show no qual tinha estado recentemente, apenas para descobrir que nós dois havíamos sido público daquela apresentação. Nosso primeiro vínculo.
Foram algumas situações como estas para colecionar desde então. Um comentário sobre o último filme de Star Wars ou a respeito do tema de uma camiseta me fizeram chegar onde estou hoje.
Passei uma viagem inteira ao Jalapão ouvindo repetidamente o rock nacional de um pendrive achado na Hilux alugada (a única música disponível), sem entender o motivo de imaginar se ele também vivia experiências similares, sentindo-se livre e vivo durante o percurso.

Mas foi somente na semana passada, depois de mais de 6 anos vendo-o dia após dia, que pude perceber o quanto ele me afeta. Foi um comentário inocente, repleto de testemunhas e pensado para ser uma piada em relação à minha urgência em resolver um problema com a ajuda dele depois da semana em que ele ficou fora do escritório. Eu falei rindo. E assim lutei internamente para continuar enquanto seu rosto se tornou vermelho e  incapaz de direcionar os olhos para mim.

Acho que foi a reação dele o que me fez enxergá-lo como uma possibilidade. E apesar da imensa consciência do platonismo desse sentimento, passei a prestar atenção em todos os detalhes da nossa convivência: uma visita à minha sala ao invés do uso do ramal, pequenos comentários pessoais que passaram a revelar discretos aspectos de humanidade, a cumplicidade nos sorrisos e olhares que começamos a trocar em situações que antes eram apenas problemáticas e pelas quais agora anseio, os toques ocasionais nos ombros e principalmente a melancolia quando vejo que seu carro não está mais no estacionamento.

Eu que passei o último ano muito próxima do esgotamento em razão de todas as situações limítrofes às quais fui exposta, agora até consigo sentir satisfação por estar vivendo tudo isso com ele.

E absolutamente nada de bom pode vir desse novo panorama.
Preciso encontrar com urgência um novo emprego. Ou uma forma de fazer as coisas voltarem a ser como eram antes. 

Enquanto isso, retomo a adesão ao home office.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

'Sobre o desafio "31 DIAS DE TERROR": Dias 2 e 3 - Frankenstein (1931) e A noiva de Frankenstein (1935)


SEMANA 1: MONSTROS CLÁSSICOS

Os filmes de monstros praticamente inauguraram o gênero de terror no cinema mainstream. Entre as décadas de 1920 e 1950 a Universal Pictures investiu pesado neste tipo de filme, levando às telonas monstros já conhecidos da literatura, como o vampiro Drácula, Frankenstein, Dr. Jekyll & Mr. Hyde e o Homem Invisível, por exemplo. 

Atores como Boris Karloff e Bela Lugosi se imortalizaram em seus papéis horripilantes. A fórmula fez tanto sucesso que o estúdio investiu até em crossovers destes monstros, que chegaram a dividir tela em algumas produções.

Agenda de filmes: 

01/10 – Drácula de Bram Stoker (1992)

02/10 – Frankenstein (1931)

03/10 – A Noiva de Frankenstein (1935)

04/10 – A Noite dos Mortos-Vivos (1968)

05/10 – O que fazemos nas sombras (2014)

06/10 – Um Lobisomem Americano em Londres (1981)

07/10 – O Homem Invisível (2020)

 

Eu gostei muito de rever esta sequência. Estranhamente, tinha a impressão de que o Frankenstein dos livros não era tão monstruoso como nos filmes, havendo nele uma réstia de humanidade expressa no vínculo com seu criador, que na minha percepção praticamente inexiste no decorrer destas obras (apesar de ficar evidente em uma das últimas cenas de "A Noiva de Frankenstein" quando poupa a vida de Dr. Henry.
No mais, esses clássicos em P&B me dão um calorzinho no coração!


Eis aqui algumas curiosidades sobre filmes:

Dois clássicos do cinema de horror, Frankenstein (1931) e A Noiva de Frankenstein (1935), estrelados por Boris Karloff, merecem ser revisitados em qualquer época.


Foi há 200 anos que Frankenstein viu a luz do dia. A ideia do romance surgiu em uma noite chuvosa de verão na Suíça, onde Mary Shelley passava férias ao lado de dois poetas ingleses: Percy Bysshe Shelley, seu futuro marido, e o célebre Lord Byron, locatário da residência onde o casal estava hospedado. Como os três estavam presos em casa em função da tempestade, Lord Byron sugeriu um passatempo. O poeta, ícone do romantismo, desafiou cada um dos presentes a escrever uma história de fantasmas (e não poderia haver atmosfera mais adequada à temática!).

Em um primeiro momento, Mary Shelley relutou em aceitar o desafio. Alguns dias depois, entretanto, a escritora teve a visão de um jovem estudante dando vida a ossos que havia recolhido de uma sepultura. Assim, com apenas 18 anos, Mary Shelley criou Frankenstein. A ideia virou um conto e foi apresentado aos demais presentes na casa. Esta é a primeira cena de "A Noiva de Frankenstein".

A ideia de adaptar o romance de Mary Shelley surgiu na sequência do sucesso de “Drácula” (1931) também produzido pela Universal Studios. Vindo deste sucesso, Bela Lugosi tinha sido originalmente escalado como Dr. Frankenstein. Mas o papel de Lugosi foi modificado para ser o monstro, que era mudo, e ele recusou após alguns testes ruins com a maquiagem, sendo então substituído por Boris Karloff, que na época era um ator inglês pouco conhecido de 44 anos de idade. A decisão tomada pelo ator húngaro é geralmente apontada como o maior erro da carreira, já que depois de “Drácula”, ele nunca mais conseguiu um papel à sua altura, vivendo na sombra do vampiro até à data da sua morte, quando foi enterrado com a capa de seu personagem.


Já Karloff conseguiu aproveitar a fama adquirida e desenvolver uma carreira de sucesso no cinema de terror longe de “Frankenstein”. O ator fez cerca de 140 filmes, a maioria deles com temática fantástica. Ao longo de mais de 50 anos de carreira, Karloff só voltou mais duas vezes a Frankenstein, nas sequencias “A noiva de Frankenstein” (1935) — que imortalizou Elsa Lanchester no papel da noiva, com o seu cabelo preto ondulado e madeixas brancas em forma de raio, apesar de aparecer apenas durante alguns minutos em cena — e “O filho de Frankenstein” (1939) — que contou com a participação de Bela Lugosi no papel de Ygor, um ferreiro com uma deformação no pescoço.

A trilha sonora de A Noiva de Frankenstein fez tanto sucesso que foi reutilizada na série do personagem Flash Gordon estrelada por Buster Crabbe.

Fontes: Cinema Livre, TAG Livros, Dalengare, Observador.pt e Boca do Inferno.

domingo, 4 de outubro de 2020

Sobre o desafio "31 DIAS DE TERROR": Dia 1 - Drácula de Bram Stoker (1992)



Eu adoro o Dia das Bruxas. Uma das minhas tradições é a de assistir, todo dia 31 de outubro, o antigo Abracadabra, da Disney. Sei que teria adorado ser americana nestas ocasiões, e viver toda a simbologia e costumes desta data na pele.

E foi este meu histórico que me fez empolgar demais com o desafio dos 31 DIAS DE TERROR da Darkisde (clica no link pra ver a matéria completa).

A proposta é simples: ter um mês inteirinho de terror, com um filme sugerido por dia.
Parafraseando Barney Stinson: challenged accepted!


SEMANA 1: MONSTROS CLÁSSICOS
Os filmes de monstros praticamente inauguraram o gênero de terror no cinema mainstream. Entre as décadas de 1920 e 1950 a Universal Pictures investiu pesado neste tipo de filme, levando às telonas monstros já conhecidos da literatura, como o vampiro Drácula, Frankenstein, Dr. Jekyll & Mr. Hyde e o Homem Invisível, por exemplo. 

Atores como Boris Karloff e Bela Lugosi se imortalizaram em seus papéis horripilantes. A fórmula fez tanto sucesso que o estúdio investiu até em crossovers destes monstros, que chegaram a dividir tela em algumas produções.

Agenda de filmes: 
01/10 – Drácula de Bram Stoker (1992)

02/10 – Frankenstein (1931)

03/10 – A Noiva de Frankenstein (1935)

04/10 – A Noite dos Mortos-Vivos (1968)

05/10 – O que fazemos nas sombras (2014)

06/10 – Um Lobisomem Americano em Londres (1981)

07/10 – O Homem Invisível (2020)


Pode parecer uma surpresa, mas nem sempre os vampiros brilharam no sol e lutaram do lado do bem. Um dos primeiros livros sobre a temática a chegar ao mercado de massa em 1897 foi o clássico romance de Bram Stoker, DRÁCULA. 

O vampiro mais icônico da história já teve incontáveis adaptações em diversas mídias. Uma das mais famosas é a estrelada por Bela Lugosi, em 1931.

A minha minha adaptação favorita é justamente a sugestão número 1 deste desafio e que, na minha opinião, é uma das mais fiéis ao livro de Bram Stoker. O filme foi lançado em 1992 e dirigido pelo lendário diretor Francis Ford Coppola. No elenco também temos nomes populares como (o maravilhoso) Gary Oldman, Winona Ryder, Keanu Reeves e Anthony Hopkins.

O que mais me impressiona neste filme é o fato de que Drácula, em situações normais, pode não ser um personagem muito simpatizante. Porém, a atuação de Gary Oldman é tão encantadora que não é difícil torcer para que Mina fique com seu príncipe, contrariando todos os esforços do Doutor Van Helsing.

Minha história com este filme começou mais ou menos aos 15 anos, quando descobri que terror era um dos meus gêneros favoritos. Ganhei o livro de Bram Stoker de um namorado na época, e por muitos anos ele foi o meu xodó (o livro, não o namorado). Tinha dedicatória com direito a "eu te amo" e tudo o mais - muito coerente com a chamada "love never dies". Li duas ou três vezes seguidas na época, até descobrir o filme. E aí foi outro vício. Mesmo depois de tantos anos eu ainda tenho a mesma sensação sinistra com a trilha sonora e as cenas de empalamento com o (não citado) vovoida Vlad Tepes, da Lucy vampira (eu tive medo dela mesmo em seus termos "normais") e do lobisomem Drácula.


Ao mesmo tempo em que cenas como a em que Drácula nega a Deus me causam perturbação, eu me pego torcendo por um final feliz pra ele. Afinal, este Drácula não parece ser o vilão, mas sim o herói romântico, vitima das circunstâncias.

O triste final (a meu ver) de Drácula me lembra também o triste final do meu livro (aquele do ex-namorado). Emprestei a uma colega anos depois, já na faculdade. E ele foi devolvido "inlível": molhado, manchado, sequer fechava. Chorei. Arranquei a página da dedicatória (apenas para jogá-la fora em uma limpeza da casa tempos depois) e comprei uma nova cópia.


"There's too much to learn from the beasts."



"Absinthe is the aphrodisiac of the self. The green fairy who lives in the absinthe wants your soul. But you are safe with me."



"Take me away from all this death."



"Give me peace."

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Sobre o amor que é sempre horrível



Vim escrever porque preciso registrar esse sentimento novo: o de ser compreendida, traduzida, de encontrar eco para os próprios sentimentos. Eu encontrei isso em uma série de duas temporadas da BBC. A famosinha FLEABAG, escrita e atuada pela Phoebe Waller-Bridge.

Há algo de muito cômico e ao mesmo tempo muito triste nela. A gente rí, ao mesmo tempo em que se emociona com todo o luto da primeira temporada, e depois de desespera torcendo por todo o drama da segunda temporada em uma situação que claramente está fadada ao fracasso.

E apesar disso, a série avisa desde o início: trata-se de uma história de amor.

Não tem um final feliz - claro que não. Pelo menos não o que eu esperava para mim. E eu acho que justamente por isso eu me impressionei tanto. E ai eu fiz o que sempre faço: eu me apaixonei de um segundo a outro, sem me dar conta, apenas para ter meu coração massacrado enquanto meu amor vai embora no sentido oposto da calçada me deixando pra trás. 

Mas pelo que conhecemos da Fleabag, ela vai sobreviver. Mesmo com o coração em pedaços, ela se levanta e segue seu caminho. E vai ao som de Alabama Shakes.


"O amor é horrível. Horrível. É doloroso. É assustador. Faz com que você duvide de si mesmo, se julgue e se distancie das outras pessoas na sua vida. Ele te torna egoísta, esquisito, te deixa obcecado com o seu cabelo, te faz cruel, te faz dizer e fazer coisas que você nunca pensou que faria. É tudo o que qualquer um de nós quer, e é um inferno quando finalmente conseguimos. Então não é de se admirar que o amor seja algo que não queiramos fazer sozinhos. Eu fui ensinado que, se nascemos já com amor, então o ponto da vida é escolher o lugar certo para depositá-lo. As pessoas falam muito sobre isso, sobre “parecer certo”, que “quando parece certo é fácil”. Mas não tenho certeza se isso é verdade. É preciso muita força para saber o que é certo. E o amor não é coisa para os fracos. Para ser uma pessoa romântica é preciso ter muita esperança. Eu acho que o que eles querem dizer com isso é: quando você encontra alguém a quem ama, isso se parece um pouco com ter esperança."
Fleabag s02x06








domingo, 6 de setembro de 2020

Sobre as dançarinas da Elba



Aconteceu durante as férias na Bahia no ano passado, quando fugi de São Paulo durante uma semana e desejei com todas as forças que aqueles dias passassem o mais devagar possível.

Nos últimos anos viajando, percebi que cada roteiro tem uma trilha sonora. Aquela música que toca aleatoriamente e da qual na verdade você nem gosta, mas que te revela o sentido daquele momento. A partir dali essa mesma musica adquire o poder de te despertar todos os sentimentos experienciados no passado, em qualquer ocasião em que escutá-la no futuro.

No Pará, Dona Onete me embalou no carimbó. Em Floripa foi o Queen com as canções que parecem a triste despedida do Freddie. Em Carrancas eu ouvi Charlie Brown até perceber que finalmente estava livre pra poder buscar o meu lugar ao sol. Em Ilha Grande eu pedi para os anjos cantarem por mim. Lenine foi o autor da minha trilha sonora em Bonito. E em Pernambuco, quando ele deveria tocar nos meus ouvidos, quem roubou a cena foi Tom Jobim.

Na Bahia, enquanto voltávamos para o hotel depois de visitar alguma das maravilhosas cidades vizinhas de Porto Seguro, as músicas de Elba Ramalho começaram a tocar na van e embalaram minhas memórias para onde eu sempre vou quando estou feliz e com saudade: eu fixo meus pensamentos nele. Eis o fato: lá estava Elba Ramalho cantando (na verdade, o pen drive cheio de arquivos MP3 estava) e sua voz me incentivava ao tiro de misericórdia: pegar o telefone assim que o sinal voltasse ao meu celular para enviar uma mensagem.

Aquela noite não foi boa. Eu caminhei pela Passarela do Álcool e ela me pareceu o lugar mais triste do mundo.

Aconteceu que "aparentemente" na Bahia Elba Ramalho é muito popular. E o ensolarado dia seguinte em Trancoso correu ao som, dessa vez, não da letra doída que me jogou no fundo das minhas dramáticas memórias, mas sim de um forró pé de serra rascante que fez com que eu, fã de rock n' roll desde o início da adolescência, começasse a me balançar ainda dentro da van na qual afundei na minha própria fossa menos de 24 horas antes e sentisse vontade de me apaixonar novamente, mas dessa vez por aquele desconhecido de olhos verdes que despretensiosamente passou caminhando pela beira do mar da Bahia. Estava proibido cochilar.

A explosão de vida que a voz de Elba Ramalho me causou neste dia foi potencializada quando soube que a artista tinha uma propriedade à beira-mar naquela praia, e ali era frequentemente vista. Em um impulso irresistível, minhas companheiras (que compartilhavam da mesma injeção de felicidade aplicada por Elba) e eu decidimos que encontraríamos a casa e manifestaríamos nossa gratidão/ admiração cantando e dançando frente à ela.

Em determinado momento, já sedentas por uma água de coco após a caminhada sob o sol bahiano, nos pareceu mais fácil gravar um vídeo para o Instagram e marcar o IG de Elba. Escolhemos então um banco de areia cercado de um lado pelo mar, e do outro por um igarapé, e com a camera em mãos, rodopiamos ao som do forró pé de serra daquela manhã em pelo menos 5 tentativas de gravação, que eram sempre interrompidas por uma falha na música, no enquadramento do vídeo ou na nossa própria atuação.

Foi quando, já muito próximas da versão final, notamos que éramos o alvo da atenção de um pequeno grupo que repousava do outro lado do igarapé. Eles gesticulavam, riam e em determinado momento, começaram a andar em nossa direção, o que nos permitiu perceber que tratava-se da guia do grupo e alguns outros turistas que estavam conosco. Com um pouco de vergonha e um pouco de "ninguém me conhece aqui", contamos que fazíamos uma homenagem à Elba Ramalho.

Contamos apenas para passar o resto da semana de férias sendo chamadas de "as dançarinas da Elba", vez que a guia (e o grupo) foram os mesmos na maior parte dos passeios que fizemos durante a viagem.

Tenho certeza de que Elba Ramalho jamais viu nosso vídeo.

sábado, 8 de agosto de 2020

Sobre a véspera do Dia dos Pais


Fiz um pedido errado no Ifood.

Eu não tomo refrigerante há alguns anos e mesmo assim pedi uma garrafa para acompanhar meu gnocchi com almondegas neste sábado.

Eu não tomo refrigerante desde que resolvi barganhar com Deus. Prometi que se ele mantivesse a vida do meu pai, mesmo diante da doença grave com a qual foi diagnosticado naquele momento, eu entregaria a Ele meu grande vicio da época e pararia de beber os quase dois litros de refrigerante que consumia a cada dia.

E mesmo assim, sem nem perceber, pedi uma garrafa de soda hoje.

O que veio a calhar porque na ânsia de fazer valer os abusivos R$ 7 que paguei na garrafinha de 400ml, eu rapidamente pensei em um modo de me livrar da culpa e transformar aquele refrigerante em um drink (desta forma minha moral não ficaria abalada em consumi-lo para lidar com este dia). Misturei licor com soda e aqui estou, com um teclado sob os dedos tentando anestesiar toda a frustração.

Os últimos meses no trabalho tem sido uma droga, a situação mundial é desoladora, a cada dia se vê mais uma triste noticia na TV e eu não consigo parar de remoer meu relacionamento com meu pai na véspera do Dia dos Pais.

 Meu pai parece não ficar satisfeito enquanto todos à sua volta não estiverem se sentindo miseráveis (talvez tanto quanto ele?). Ele passou por bons traumas, desde a perda do pai suicida, até a morte do irmão gay com AIDS nos anos 80 com apenas 27 anos (abafada até hoje por uma pneumonia).  Estas vivências são os parâmetros dele.

O histórico dele começou com minha mãe. Proibiu-a de trabalhar e estudar ao se casarem, cometeu traições, ameaçou suicídio quando foi descoberto, e ao ser perdoado, começou a convidar mulheres aleatórias pra andar na garupa da moto dele sem o mínimo cuidado em esconder ou justificar porque minha mãe, sem estudo, sem trabalho e com dois filhos pequenos nos anos 90 dificilmente o deixaria. Durante 30 anos ele a transformou na histérica ciumenta, escandalosa e acomodada aos olhos de todos. Foram 30 anos até que ela finalmente resolvesse se libertar e ir embora.

Na minha vida não foi tão diferente. Desde pequena ele aprendeu a controlar pelo medo. Quando eu, adolescente rebelde, comecei a questionar o que ele dizia, ele passou a controlar por privação. Depois por chantagem. Hoje, com gritos, agressões verbais e outras psicológicas. Minha irmã não aguentou por muito tempo e viu no casamento aos 25 anos uma forma de escape. Separou-se em menos de  1 ano e hoje vive e algum lugar que eu desconheço. Ninguém nunca sabe onde ela está, exceto por raras ocasiões em que ela aparece para cumprir seu papel social, em Natais ou aniversários.

Eu me lembro de dizer “eu te amo” pra ele no meu aniversário de 15 anos e ouvir a resposta debochada de que eu estava querendo aparecer na frente de todos. Quando, feliz por ter acessado meu boletim na faculdade e constatado perto da 00h00 que tinha conseguido a média do último semestre para me formar depois de 5 difíceis anos de graduação, gritei de felicidade e ao invés de me dar parabéns, ele me mandou calar a boca porque já era tarde. Quando chego cansada do trabalho ele me chama de preguiçosa. Quando começo a desinfetar as compras ele me chama de paranoica. Se me percebe satisfeita por qualquer motivo, arruma um assunto para me criticar. Por diversas vezes pensei em deixa-lo sozinho, mas com a doença progressiva veio também minha culpa em ir embora. E eu fui ficando para ajudá-lo. Para aproveitar a vida dele enquanto posso. E agora na boca dele me tornei a solteira que ninguém quer, a que não vai dar netos, com quem o sobrenome da família vai morrer.

Ele nunca me deixou faltar nada material e até fez seus sacrifícios. Às vezes me sinto culpada por estar frustrada em relação a ele.  Em outras penso que a culpa de algumas das minhas limitações pessoais é dele e encontro razão para todos os sentimentos ruins que ele me desperta.

Eu pensei em beber aquele refrigerante, mas tenho medo de brincar com Deus. Então disse a Ele que se misturasse a soda com licor, estaria bebendo um drink e deste modo poderia manter a nossa barganha.

O licor na soda me ajudou a lidar um pouco melhor com a minha frustação hoje. É como se eu tivesse matado um pouquinho meu pai. Mas também o salvei.

sábado, 1 de agosto de 2020

Sobre precisar falar sobre a Gi


Eu preciso falar sobre a Gi.

Mas falar sobre ela não pode ser durante a semana, no meio da preocupação e da correria.
Não pode ser enquanto estou tensa com o horário para acordar amanhã, ou desconfortável em algum lugar possivelmente infectado com coronavírus.

A Gi merece uma reflexão feita numa noite de sábado. E se a pandemia exige, com uma xícara de mate quente do lado, enquanto na TV passa meu filme preferido. Deve ser feita no conforto do meu pijama de algodão, na segurança da minha casa. Sem preocupações, sem pressa.

Porque é assim que ela sempre me fez sentir: segura.

Mesmo quando eu nem a conhecia. Quando eu, num final de 1º de janeiro, decidi que já não podia mais continuar levando a vida que vivia, ou me perderia. Me arrisquei e publiquei. Ela leu. E corajosa, aceitou me salvar.

Antes mesmo de nos conhecermos eu sabia que ia gostar dela. Pelos comentários divertidos e inteligentes nas redes sociais, pelo comprometimento e devoção que demonstrava com sua família, e pelo carinho que os amigos dedicavam a ela. Ao nos conhecermos veio a definitiva certeza.

Nos atrasamos. Passamos vergonha. Elaboramos planos para otimizar nossa situação. Compartilhamos a mesma tendência a evitar confusões (sem contudo sair por baixo). E o gosto pela sonequinha da tarde.
Com a Gi eu visitei a Toca do Raul, e compartilhei meu crush no cara que não sabia contar. Com ela eu corri pela areia com as malas na mão para garantir que sentássemos no mesmo banco na volta pra casa. E foram muitas voltas. Foram pizzas de pequi no cerrado, sacolés de coco no Rio de Janeiro, viagens de balão em Boituva, sorvetes de feijão na Liberdade, trilhas de mais de 10km em Goiás. Tardes preguiçosas sob o sol na areia, cervejas às 10h da manhã em festivais, viagens de trem pela cidade... Mas falar sobre tudo o que já vivemos não era meu objetivo aqui.

A Gi me faz querer ser o melhor que posso. De tão bom coração, às vezes me constrange com todas as minhas imperfeições. Ela é tolerante, generosa, bondosa, justa. Nunca diz não. Ouve. Ajuda (receber uma mensagem dela faz uma diferença gigantesca no meu dia). Escancara sua humanidade e nem por um único segundo durante esses anos me fez sentir em dúvida sobre o fato de poder contar com ela para o que for necessário.
Ela não pressiona, não julga. Entende como as pessoas são e sempre faz o melhor para que elas se sintam bem. Ela acalma, acolhe, aceita. 

Frequentemente penso que não merecia ter uma pessoa tão incrível na minha vida. Sempre fico com a sensação de não estar retribuindo o suficiente toda a dedicação que ela tem comigo.
Vocês já conheceram alguém assim? Que de tão surreal faz contraste com tudo o que falta em você mesmo?
Eu lamento não ser parecida com ela. Queria ser mais afetuosa, mais aberta, estar mais presente, ter estado em seus aniversários. Faço planos para melhorar, mas toda hora aparece um "problema" (uma chuva, uma falta de dinheiro, uma preguiça, uma pandemia). E mesmo assim ela nunca deixou de estar lá pra mim.

Ela me inspira diariamente, tanto por seu exemplo, quanto pela fé que demonstra em mim. E todas as formas de agradecimento nas quais consigo pensar me parecem insuficientes para a grandeza da pessoa que a Gisele é.
É por ela que eu torço, vibro. É por ela que procuro quando tenho notícias boas, e quando preciso de consolo.
É pra ela que eu desejo toda a felicidade que o mundo tem a oferecer. Que nada te machuque. Que a vida seja boa pra você. E que a luz do seu coração ilumine todos os seus caminhos. 

Gi, eis seu texto. O que precisava vir do coração. Apesar da demora, saiu.

Amo você. Obrigada por ter lido aquela publicação.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Sobre o meu modus operandi de tocar a vida


Eu poderia me acostumar a esta vida de EAD. 
Hoje assisti a aula de inglês do meu quarto, com um cobertor jogado nos ombros, chinelos fofinhos e meias multicoloridas, enquanto fazia carinho na orelha da minha cachorra e minha gatinha dormia no meu colo.
Ouvia ao longe a TV da sala e sabia que meu pai estava bem.
Não precisei me preocupar com o horário e nem se havia vaga no estacionamento.
E quando a aula terminou, fechei o computador e pulei imediatamente na cama pra assistir mais um episódio de The Ranch enquanto comia a batata smile que deixei assando e me dava água na boca.
Sem trânsito, sem trajeto, sem formalidades, sem maquiagem, sem roupa apresentável.

Excluindo argumentos políticos, econômicos e humanitários, no geral eu tenho lidado bem com a quarentena. Muito provavelmente porque minha rotina não foi alterada para o modo home office. Na verdade, tenho tido muito mais trabalho do que o habitual na indústria alimentícia da qual sou funcionária há 8 anos. Como fui uma das únicas a não aderir ao trabalho remoto (por motivos de: não quero trazer os problemas de lá pra dentro do meu santuário particular), passo o dia sozinha ouvindo Queen, Janis Joplin e Aerosmith no meu próprio volume, e nem sinto passar o dia por causa da demanda (sempre urgente) acumulada.

Eu poderia viver bem sem toda a pressão das baladas aos finais de semana, e dos "rolês" (eu sou malandra e falo "rolê") instagramáveis obrigatórios no sábado a noite. Dê-me meus livros, meus filmes e séries old school, minha playlist anos 80', um teclado pra escrever, algumas fotos pra relembrar, e três ou quatro amigos para me preocupar. 


Aflijo-me com a situação do mundo, das vidas perdidas, da fome, do desamparo, e todas as noites rezo ao meu Deus amigo para que tenha misericórdia do nosso planeta e cesse tanto sofrimento.
Mas hoje eu não vou reclamar. Hoje eu não sou um problema. Meu pai está bem na sala, assistindo TV. Tive um bom desempenho na aula e no meu trabalho. Estou gozando o prazer da minha própria companhia no meu quarto. Eu diria que aprendi um novo jeito de viver nestas últimas semanas, mas na verdade eu sempre soube que este era o meu modus operandi de tocar a vida. E me sinto completamente adaptada e familiarizada a ele neste momento. Espero que depois que as coisas voltarem ao normal (se for possível voltar ao normal após uma vivência como esta), eu possa continuar aqui. 


Mas nisso eu só vou pensar mesmo quando for preciso. Hoje eu tenho apenas coisas a agradecer. Aqui sozinha no meu quarto.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Sobre a morte que é inexorável


"A morte quando vem é inexorável, é mal-educada, grosseira. Entra e não pede licença. E colhe uma vida tão desinteressadamente como quem colhe uma amora no pé.
André se espalhou em mais sete pessoas. Doou seus órgãos. (...) Doou-se em morte, fazendo estranhos não perderem a fé. André continuou vivo. Porque, afinal de contas, morrer é só não ser visto."

Carmen O. in: Tardes de maio. Novo Século. 

Sobre mecanismos de defesa sofisticados


"Ela sorriu de novo. Um verdadeiro e sofisticado mecanismo de defesa.
Esquecer. Guardar. Ignorar. Lá, bem no fundo do baú do meu hipocampo. Abafem o meu sistema límbico. Eu quero, eu preciso negligenciar tanta dor. Eu deprimo. Eu demencio. Eu me esqueço de você. Eu me esqueço dela. Eu me esqueço da vida. Mas ninguém é imune a toque. Ao que nos resgata de nós mesmos.
Como diria Alexandre Pope: "Quão feliz é o destino de um inocente sem culpa. O mundo em esquecimento pelo mundo esquecido. Brilho eterno de uma mente sem lembrança. Cada orador aceito e cada desejo renunciado." 

Carmen O. in: Tardes de maio. Novo Século.

Sobre uma existência digna para o meu óleo de coco bahiano


Passei minhas últimas férias na Bahia, pouco tempo depois de ter feito a maior idiotice capilar que poderia: (tentei) descolorir meu cabelo que já acumulava milhares de camadas de tinta preta ao longo dos anos. Minha cabeça passou bons meses carregando pura palha laranja (sim, porque era óbvio que jamais daria certo).

Pois bem, na Bahia, tomada pela vergonha dos cabelos porosos, úmidos e cheios de maresia, bem como seduzida com o glamour de Trancoso e das famosas posando seus fios fantásticos para o Instagram, veio a calhar o encontro com uma guia local que contou visitar periodicamente uma aldeia indígena e trazer de lá diversos produtos medicinais para venda a turistas (alguns prometendo inclusive a cura para o câncer). 

Minha maior demanda no momento era a eterna rinite (e para isso pedi um vidrinho de óleo de menta milagroso que de fato possui o poder de "destravar" o nariz com apenas algumas gotas friccionadas e inaladas diretamente das mãos).
A segunda demanda de urgência era claramente meu cabelo cor de laranja seco (qualquer um poderia afirmar isso apenas de olhar). Então comprei um segundo frasco de óleo de coco puro.

Lembro-me de ter adquirido no passado um vidrinho deste produto em uma perfumaria de São Paulo por apenas 3 reais, mas de não ter obtido muito sucesso no uso. O que me impressionou na Bahia foi o fato de que aquele óleo de coco "dormia". Sim. A guia (que tinha o cabelo mais longo e brilhante do mundo) mostrou-nos como as características puras do óleo o faziam "esbranquiçar" sob temperaturas baixas (justamente por ser extra-virgem, ele se solidifica em temperaturas abaixo de 25º, retornando à consistência da polpa do coco). Levei pra casa. Mas não sem antes ouvir atentamente as dicas de uso.

A nossa simpática guia (de verdade, dava vontade de guardar num potinho) nos aconselhou a deixar o produto agir no cabelo por algumas horas, e como sugestão, mencionou que poderíamos dormir com ele nos fios, lavando-os pela manhã.
E, à parte, mencionou também o modo como ela própria obtinha os seus resultados: "eu sempre passo antes de sair de casa quando fico o dia todo pescando em alto mar".
A partir desta colocação eu não consegui ouvir mais nada. 

Ah, que qualidade de vida! Que realidade paralela surreal é essa encontrada em locais como a Bahia? Depois daquela referência a dias em alto mar, neguei-me veementemente a dar ao meu óleo de coco alguma existência indigna, quase como se estivesse desculpando-me por tê-lo tirado de Trancoso para uma vida de sofrimento nos cabelos porosos de uma paulistana que acorda às 5h30 e vai dormir 00h00 dia após dia. Não, ao meu querido óleo de coco foi prometida uma jornada que, dentro das possibilidades, remetesse ao seu primórdio no alto de um coqueiro banhado pelo sol nordestino.

É o que fiz hoje (e praticamente em todos os sábados luminosos e límpidos depois daquela viagem), quando carinhosamente aplico meu óleo de coco nos cabelos e, feliz, passo o dia lavando e estendendo minhas roupas ao sol. A minha versão paulistana de pescar em alto mar na Bahia.

sábado, 2 de maio de 2020

Sobre amores eternamente náufragos



"O movimento vaivém nas águas-lembranças dos meus marejados olhos transborda-me a vida, salgando-me o rosto e o gosto. 
Sou eternamente náufraga , mas os fundos oceanos não me amedrontam e nem me imobilizam.


Uma paixão profunda é a boia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas."


Conceição Evaristo

Sobre amar o mundo como ele é (e não apenas tolerá-lo)



“Boa parte da tradição filosófica sugere, para que a vida seja boa, certa reconciliação com o mundo, com o real. Ou seja, estar bem com o mundo – até mesmo amá-lo – como ele. Entre tantos que sugeriram ideias semelhantes, podemos destacar o amor fati de Nietzsche, o que me faz pensar na seguinte imagem: alguém dando um mergulho em águas cristalinas numa praia do Nordeste brasileiro. E diante daquela maravilhosa oceânica que ele contempla, num determinado momento tem a sensação de que gostaria de suspender a passagem do tempo. Pois o mundo ali parece completamente adequado e conveniente. A pessoa simplesmente contempla o mundo onde está inserida e que lhe faz bem, e se sente reconciliada com ele, com aquela realidade que se apresenta como amável naquele momento. Poderíamos, então, com facilidade, identificar esse instante da vida como um momento feliz. Não é bem isso que o filósofo sugere apenas, mas sim que talvez tenhamos que amar o mundo como ele é sempre. Não somente tolerá-lo.”

Clóvis de Barros Filho; Leandro Carnal in: Felicidade ou Morte. Papirus 7 Mares.

Sobre as tristezas das vidas que preterimos



“O aumento de alguma lucidez torna as escolhas progressivamente complexas, menos óbvias e portanto, mais difíceis de serem operacionalizadas. Há portanto, certo sofrimento no momento da escolha. E a dificuldade em escolher que aumenta quanto maior o número de variáveis de que disponibilizamos para escolher se traduz num sentimento desagradável. O sentimento próprio daquele que percebe que a vida depende da sua escolha e liberdade e não sabe, não tem certeza, do melhor caminho, e fica com medo de se arrepender. E o que é mais incrível: feita a escolha, esse sentimento não desaparece. Porque, curiosamente, nunca sentimos as tristezas das vidas que preterimos. Sentimos só as tristezas da vida que escolhemos viver.”

Clóvis de Barros Filho; Leandro Carnal in: Felicidade ou Morte. Papirus 7 Mares.

Sobre a felicidade fugaz



“A praia do Nordeste é perfeita não porque aquele instante possa ser permanente, mas porque ele é fugaz.  Assim como uma flor de verdade é superior à flor de plástico, ainda que esta possa ser mais firme, mais duradoura e até, numa foto, se mostrar mais bonita que a flor dita verdadeira.”

Clóvis de Barros Filho; Leandro Carnal in: Felicidade ou Morte. Papirus 7 Mares.

Sobre a felicidade idealizada que acaba por se tornar real



“Aquela praia do Nordeste, então, se torna não apenas feliz pelo momento em que alguém submerge naquelas águas lustrais, mas pela lembrança que essa pessoa constitui em família, pela foto que registra o momento e que, ao ser observada ao longo dos próximos anos, trará uma memória permanente, biográfica, feliz. E fará parecer que essa felicidade projetada e idealizada num curto momento tornou-se uma felicidade real.”

Clóvis de Barros Filho; Leandro Carnal in: Felicidade ou Morte. Papirus 7 Mares.

Sobre elaborar vivências



“Felicidade apresenta muita construção e elaboração de memória. O primeiro beijo romântico como lembrança; naquele momento é mais medo do que prazer. A lua de mel aumenta de importância à medida que o casamento entra em rotinas e desgastes. Quando prosperamos materialmente, em geral, pensamos com certa poesia nas dificuldades daquela época anterior, menos abastada. Assim, tudo vai sendo elaborado de forma que se criem na mente os processos de felicidade ou infelicidade.”

Clóvis de Barros Filho; Leandro Carnal in: Felicidade ou Morte. Papirus 7 Mares.

Sobre continuar ouvindo o que não se diz mais



“Não é o tipo de coisa que você ache que vá lhe fazer falta. Talvez você nem mesmo perceba tudo isso naqueles milhares de vezes (...) Talvez você nem mesmo tenha notado.
Mas nota quando ele não está mais ali. Nota muitos lugares onde ele não está mais e ouve muitas coisas que ele não diz mais.
Eu ouço.
Ouço o tempo todo.”

Nathan Filer in: Onde a lua não está. Rocco.

Sobre os átomos que agora fazem parte de outra pessoa



“ - Existe alguma parte do maior físico do mundo sentada entre nós agora? (...) Para o que estão interessados, a resposta é sim, e não só um ou dois átomos que antigamente faziam parte de Einstein estão atualmente, pelo menos por enquanto, fazendo parte de vocês. Neste momento. E não só de Einstein, mas de Júlio Cesar, Hitler, o homem das cavernas, dinossauros...
A sineta tocou, interrompendo sua curta lista.
Mas a ela eu acrescentei outra pessoa.”

Nathan Filer in: Onde a lua não está. Rocco.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Sobre o Lado B "daquela" viagem à Ilha Grande


Eu tenho encontrado nas minhas reminiscências (ui, que rebuscada) uma forma terapêutica de lidar com a tensão dessa pandemia. E com certo sucesso.

Nesta noite, apoiando inocentemente este processo, minha amiga @giselecalderon me enviou um vídeo zuadíssimo gravado durante a viagem que fizemos juntas à Ilha Grande há 3 anos atrás. Fiquei pensando sobre qual seria o nome do distúrbio que sofremos para que ao invés de registros fotográficos bafônicos (como diz a juventude) em águas cristalinas e ouso dizer fluorescentes, tenhamos em nossos HDs vídeos como aquele, impublicáveis. Pensei muito, e não cheguei à uma conclusão satisfatória.

O fato é que, enquanto ríamos por conferência e eu me impressionava com a quantidade de percepções e besteiras que sou capaz de compartilhar em uma conversa de whatsapp, me passou pela cabeça que gente postando foto lacradora de viagem tem de monte por aí (até nós mesmas temos aquela meia dúzia que foi pro instagram depois de uns filtros). Mas o que faz a experiência ser memorável são justamente vídeos como aquele, impublicáveis (mas dos quais sempre teremos um comentário a mais a fazer).

Então, para me beneficiar da minha nova terapia e revisitar aquele feriado, resolvi escrever o LADO B dessa viagem e registrar quantas rosas faltaram naquele mar. 

- Eu começo me sentindo especial. Explico: conheci a Gi em um grupo de viagens no Facebook cerca de dois meses antes, durante um feriado tedioso que me fez decidir mudar minha vida imediatamente. Trocamos três ou quatro mensagens e resolvemos dividir um quarto em uma trip (a popular - e meio brega - excursão) para a Ilha do Mel durante o carnaval. Todos sabemos que as chances disso ter dado terrivelmente errado eram astronômicas, afinal, ela poderia ser uma psicopata (ou até onde ela sabia, eu também). Ou podíamos ser ambas muito chatas (vejam que aqui uso o advérbio de intensidade para que ninguém me acuse de não ter pontuado que sou chata, afinal não há como negar, mas não MUITO), ou frescas, ou esnobes, ou detestar carnaval (ou pior ainda: adorar). Mas eu não sei nem como começar a explicar o match e em dois meses eu sentia como se conhecesse a Gi há 10 anos. Por isso me emocionei quando em meio a tantas pessoas neste vasto mundo, ela convidou justo a mim para acompanhá-la durante os 3 dias.

- Primeiramente, não se engane. Não foi nosso espírito aventureiro que nos motivou a fazer essa viagem. Foi a inclusão de pensão completa. Se tinha passeio no pacote? Nem me me lembro. Mas ofereceram café da manhã, almoço e jantar todos os dias.

- Ao chegar em Angra dos Reis a tensão me dominou. Em minha profunda ignorância, queria embarcar na escuna o quanto antes e sair do continente. Não conseguia parar de pensar sobre o triste acidente do deslizamento que ocorreu no réveillon de 2010. Ao desembarcar na Ilha, e tendo notado algumas pedras "peladas" no morro que me causaram arrepios, aliviei minha tensão falando a respeito do meu temor com a Gi "Ainda bem que estamos na Ilha Grande, e não em Angra dos Reis". Menos de 15 minutos depois descobri que aquele morro pelado era o Morro da Carioca e estávamos hospedadas na Enseada do Bananal. Neste momento eu soube que seriam longos três dias (além de lidar com minha ansiedade, precisei controlar a língua e não comentar com meus pais ao telefone sobre o local onde estava, afinal, eles possuem um longo histórico de pedir a ajuda da polícia para fazer com que eu sempre atenda suas ligações. Mas isso é história pra outro post).

- Momento merda: durante divisão dos quartos, que sabíamos desde o início que seriam coletivos, fomos acomodadas em um com uma beliche e uma cama de casal, COM UM CASAL nela. Mas não era qualquer casal. Era O casal mais idiota do mundo. Por sorte eles não pareceram interessados em dormir tanto quanto nós estávamos (e felizmente ficaram acordados fora do quarto).

 - O dia foi amanhecendo e o sol NÃO FOI surgindo. E meu humor começou a ficar péssimo. Querendo salvar o feriado, e imaginando que nada mais poderia dar errado, Gi e eu resolvemos nos integrar com a galera. Foi quando tomamos conhecimento da tensão que havia ocorrido naquele mesmo local, com aquelas mesmas pessoas, um ano atrás (em tempo, a fofoca: aquela viagem estava sendo organizada por um casal. A parte masculina do casal usou algum tipo de tóxico forte que fez com que ele ficasse com uma menina aleatória na frente da esposa, com direito a andar de mãos dadas pela praia e tudo o mais. A esposa, vendo aquilo, jogou todas as coisas da menina aleatória na água. A menina aleatória virou a Paola Bracho e resolveu que sua missão de vida era atormentar o casal. E lá estava ela, naquela viagem, fazendo exatamente isso, e por algum motivo estranho decidiu que queria ser nossa amiga). Resumindo, além de correr do deslizamento, a gente também correu para o mais longe possível da Menina Aleatória Bracho e seus amigos, com medo de ter nossos pertences jogados na água também.


- Então, em nossa condição isolada (e em provisória segurança), aproveitávamos a brisa do mar durante o trajeto entre uma praia e outra quando mergulhei de cabeça no clima e comecei a me ressentir pra Gi sobre o fato de ser solteira à beira dos 30 anos. Enquanto minha amiga ouvia pacientemente e tentava encontrar uma solução, um rapaz simpático, garboso e típico Rei do Funk se aproximou e começou a puxar papo. Do nada, e com total liberdade (que eu obviamente não dei) me fez cafuné de um jeito sedutor (amadoh?). Minha reação foi muito natural (por motivos de: 1 - eu estava sendo eu mesma; 2 - eu não percebi as intenções do cara). Pedi que ele parasse porque estava me deixando com mais sono do que eu já sentia (acho que também mencionei ter recordado de que, na infância, minha avó me fazia cafuné na hora de dormir). O confiante e corajoso rapaz ainda fez um elogio (que desconfio não ter sido sincero) ao meu sorriso, que na época era amarrado por um aparelho fixo. De imediato comecei a discorrer sobre os problemas de alinhamento dos meus dentes e todo o trabalho que aqueles ferros demandavam (em especial os relacionados à prevenção ao tártaro e outras coisas nojentas que podem ser encontradas dentro de uma boca). Aquele foi o fim da conversa. Também foi a última conversa que tivemos.

- Foi em uma de nossas paradas na Praia de Lopes Mendes, desejosas de uma foto nas pedras, que iniciamos uma manobra: a de procurar pessoas com nosso biotipo e calcular as chances de se dar mal em uma empreitada roots com base na observação do comportamento dos outros. Resultado: não temos nenhuma foto nas pedras. Mas também não passamos vergonha (as chances eram altas).

- Foi também na Praia de Lopes Mendes que nos afeiçoamos muito à uma moça que estava na trip, a fotógrafa. Nossa amizade, no entanto, durou pouco, especificamente até o momento em que voltamos ao barco e ela foi ao banheiro. Saiu de lá com uma tira de papel higiênico presa na bunda. Não tivemos coragem de contar e ela percorreu a escuna toda fotografando as cerca de 40 pessoas com aquele rabinho branco pendurado e balançando ao sabor do vento. 

- Ainda na Praia de Lopes Mendes pegamos ranço de um cara que passou a viagem toda usando uma máscara de cabeça de cavalo e falando coisas sem sentido (que faziam menos sentido ainda porque a máscara não nos deixava entender muito bem o que ele dizia). Por motivos que não sei explicar, revendo os registros fotográficos e de vídeo que fizemos, encontrei pelo menos 5 arquivos dele. Seria o início de algum tipo de sentimento persecutório? Deletei todos (mentira, deixei um pra recordação).

- Segundo dia nublado na Ilha. Das 07h às 23h tudo o que fiz foi reclamar dos R$ investidos naquela viagem. A única beleza que eu conseguia enxergar era "o verde da água do mar, mesmo com o tempo nublado. Olha isso. Não é um verde de lodo. É verde mesmo com o tempo fechado, e Meu Deus, imagina isso tudo num dia de sol". E repete. Ad eternum. 

- Na segunda noite na Ilha rolou a festa de aniversário da agência. Era uma confusão de funk, músicas da Xuxa, cabeças de cavalo e pessoas muito maquiadas (enquanto eu usava meu reconfortante moletom velho e desbotado porque o medo de acabar embaixo de um possível deslizamento me dava calafrio - e digo corajosamente que também afetava meu intestino). Mas uma caipirinha de maracujá superfaturada, milhares de docinhos de aniversário e o remix de 30 segundos de B.Y.O.B. (que eu não faço ideia do que estava fazendo no meio daquela playlist) me ajudaram na integração. No final da festa, até tentei cantar algumas letras (mas não sem protestos) e dancei.

- Ok, não foi no final da festa.

- Ok, não foi exatamente uma dança.

- O que aconteceu realmente: por volta das 22h, já com muito sono, e com a barriga cheia de pinga e cajuzinhos, Gi e eu começamos a bocejar e recostar na parede. Foi quando a parte masculina do casal (mencionada alguns parágrafos acima) nos ameaçou dizendo que se continuássemos sentadas, ia nos arrastar até a pista de dança, especificamente para o meio da rodinha. Imediatamente levantamos e começamos a nos mexer (claramente acreditando que o que fazíamos era dançar). E no meio da confusão, sem sermos notadas, fomos dançando de volta para o quarto. ZZZzzzzZZzzzZzz.



- No terceiro e último dia, o que finalmente amanheceu com o revoltante sol mais lindo de todo o feriado, quando já tínhamos as forças esgotadas e uma pequena centelha de otimismo começando a aumentar em razão da perspectiva de voltarmos para casa, saímos para a última aventura da Ilha Grande e por motivos que desconhecemos, nos pareceu uma boa ideia puxar um coro de "Meu Bem Querer" do Djavan com a galera da escuna, o que nos rendeu registros fotográficos estranhos (como este).

- Já no retorno à São Paulo, famintas (sim, mesmo tendo usufruído do buffet no café da manhã, almoço e jantar, além dos sacolés antes do retorno para o continente, quando fizemos questão de experimentar todos os sabores disponíveis na barraquinha), e com uma necessidade enorme de obter algum consolo e conforto, resolvemos investir em um jantar no Graal. E por R$ 21,90 conseguimos desfrutar de um incrível banquete de uma coxinha e um suco ácido (mais um lamento: pelo mesmo valor, teríamos ficado satisfeitíssimas na lanchonete de um certo palhaço aí...).

- Acordei de um cochilo no ônibus e notei que já percorríamos a Marginal Tietê. De imediato sacudi a Gi e nos preparamos para desembarcar assim que o ônibus estacionasse no terminal. Pegamos nossa bagagem e, literalmente,  corremos pela rua arrastando as rodinhas enquanto deixávamos as despedidas para trás com medo de que nos dissessem que na verdade a viagem ainda não tinha acabado.

Sobrevivemos. E estamos com saudade.

sábado, 25 de abril de 2020

Sobre o desrespeito do universo


"Digo a mim mesmo que foi um olhar de perdão. No último momento, ele sabia que eu o amava, que eu jamais quis machucá-lo.
Mas aconteceu rápido demais. Meu mundo não se moveu em câmera lenta. Às vezes me pergunto se o dele foi assim e, se foi, que última imagem eu lhe dei? (...)
E este universo desrespeitoso continuou com sua vida, como se nada de importante tivesse acontecido."

Nathan Filer in: Onde a lua não está. Rocco.


Sobre doença mental e egoísmo


"O pior de tudo é que me tornei egoísta. 
A doença mental volta as pessoas para dentro. É o que eu acho. Deixa-as para sempre presas pela dor de nossa própria mente, da mesma forma que a dor de uma perna quebrada ou um polegar cortado prenderá sua atenção, segurando-o tão firmemente que parece que sua perna boa ou seu polegar bom deixaram de existir.
Estou preso a olhar para dentro. Quase todo pensamento que tenho é sobre mim - toda essa história tem sido só sobre mim; como eu me sinto, o que penso, como eu sofri."

Nathan Filer in: Onde a lua não está. Rocco.



Sobre os desdobramentos do passado.


"Então empilho essas páginas com as demais e deixo tudo para trás. Escrever sobre o passado é uma maneira de vê-lo se desdobrar novamente. Colocamos lembranças em folhas de papel para saber que elas sempre existirão. Mas esta história nunca foi uma lembrança - é  descoberta de um jeito de se libertar. Não sei do fim, mas sei o que acontecerá em seguida. (...) É um começo."

Nathan Filer in: Onde a lua não está. Rocco.

Sobre finitude



A gente sempre acha que vai encontrar novas oportunidades. É condição humana que nunca pensemos em nossa finitude.  É necessário para que continuemos vivendo por aí, sem o temor paralisante do fim.

Passei alguns anos alimentando mágoas, encenando dramas, e pensando que tudo aquilo um dia teria fim, quando em algum momento da eternidade que me restava eu decidiria perdoar algo com que eu nem me importava mais, mas durante o arrastar do tempo já fazia parte de mim. Até que durante um choque de realidade, quando menos esperava estava à beira de um leito de UTI, implorando por mais uma noite assistindo um programa de TV do qual eu nem mesmo gostava só para ter o prazer de estar na companhia daquela que me deixava.

Sua finitude escancarou o teu valor, mas já era tarde demais pra mim.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Sobre a terceira amizade em Aristóteles


Hoje à tarde tocou "Palpite". Ouvi pela janela no rádio do meu vizinho, que tem um gosto muito refinado pra música (às vezes eu desligo meus roquenrrous pra ficar ouvindo a seleção de MPB dele, que é de fato fantástica).

Fazia tanto tempo que eu não ouvia essa música. Talvez a última vez tenha sido em 2003, quando a novela "Por amor" passou no Vale a Pena Ver de Novo, eu acho. Naquela época eu estava prestes a completar 15 anos, e tinha acabado de fazer uma amizade-pra-vida-toda.
Conheci minha amiga-irmã quando minha vida ainda se resumia à escola e igreja, logo depois de passar do posto de coroinha à catequisada e começar a andar com o grupo de xovéns. Foi mais ou menos nesta época que tive minha primeira paixão platônica avassaladora (que rende boas histórias - e constrangimentos - até hoje).

Minha amiga-irmã foi minha alma-irmã porque espelhava exatamente como eu me sentia em relação ao mundo, às pessoas, às expectativas de futuro. Uma mescla de desejos fantasiosos da vida que obviamente deveria ser maravilhosa à nossa maneira (e claro, ela o é neste futuro real, mas completamente diferente do imaginamos naquela época).

Eu me recordo claramente dos primeiros momentos que compartilhamos. Foi em uma querrrrmesse, quando descobrimos que nossos alvos de afeto eram amigos, e instantaneamente nos tornamos amigas também.

Lembro de me sentir, pela primeira vez, extremamente adulta quando fiquei na rua até mais tarde sem a supervisão dos meus pais, e que em uma dessas noites, dei meu primeiro beijo e fui correndo contar pra ela. Houve uma festa em que, ao ser abraçada por um garoto muito popular na época, eu praticamente flutuei enquanto via ela vibrando por mim. Ainda consigo sentir o cheiro das velas queimando quando me sentava ao lado dela nos bancos da igreja. Se eu me concentrar, dá pra lembrar do sabor dos lanchinhos nos retiros espirituais dos finais de semana.

Durante a semana depois da aula, nossas tardes eram dedicadas à novela "Por Amor" na sala da avó dela, enquanto registrávamos quantas vezes havíamos sido alvo dos olhares de nossos afetos. Nas tardes de sábado íamos até a famigerada locadora de vídeo e passávamos o resto da noite vendo filmes de terror na sala da minha casa. Quando finalmente chegava o domingo, as tardes muitas vezes eram usadas para compartilhar lágrimas meio escondidas frente às expectativas frustradas dos nossos amores platônicos.

Mas não foram só as lágrimas que compartilhamos: foram os amigos, as risadas, os bilhetinhos à mão, os diários. Foi o orgulho quando nos perguntaram se éramos irmãs, e ao respondermos que éramos amigas há mais de 10 anos, sorriram e disseram que então éramos irmãs sim. Foi também o sentimento frequente de que éramos muito diferentes das pessoas à nossa volta e nunca nos encaixamos perfeitamente no lugar onde estávamos inseridas. Foi a vontade de conhecer o mundo, de ganhar conhecimento, de obter sucesso e viver a vida como bem entendêssemos (e daí que fosse completamente diferente do que imaginamos quando éramos crianças?).

Ter compartilhado tudo isso com alguém que ecoava todos os dramas de crescer e experienciar a adolescência traz calor e saudade até mesmo dos momentos mais tristes.

Uma vez, já adulta, me confundi em relação ao que sentia por uma pessoa que conheci em uma situação muito satisfatória. A lembrança da situação feliz que compartilhei com tal pessoa me fez associá-la à sensação de satisfação, como se a causa da felicidade fosse este indivíduo. Isso, é claro, acabou muito mal.
Em relação à minha amiga-irmã, eu acredito que tenha sido exatamente o contrário: todas as situações e lembranças só foram/ são felizes porque estavam sendo compartilhadas com ela.

Eu lamento ter mudado. Eu lamento não ter lidado bem com algumas coisas, de ter tido pouca paciência, de ter achado que as coisas certas eram as que eram feitas à minha maneira. Queria ter podido ajudar mais, e ter feito diferença como ela fez na minha vida.

Dia desses estava lendo em um blog algo sobre a "Amizade em Aristóteles", que enumera 3 motivos pelos quais uma amizade se constrói. Ela pode se desenvolver por 1) utilidade de uma pessoa à outra, e 2) por prazer (compartilhar interesses e atividades em comum). O problema desses dois motivos é que a amizade acaba quando a utilidade ou o prazer findam. 
O terceiro motivo, no qual se baseiam as amizades mais duradouras, é a virtude de uma pessoa. "Eu gosto de fulano porque ele é bom". E este é o motivo mais "completo" porque a pessoa que é boa provavelmente também é útil e agradável.

Assim, resguardado o fato de que às vezes não temos nem ao menos contato com as pessoas com quem nos relacionamos no passado (por N motivos), o sentimento de amizade é duradouro porque é fundado na pessoa em si, em seu caráter e em sua bondade, que são imutáveis. É isso o que sinto em relação à minha amiga-irmã-da-vida-toda. Afinal, do amor ninguém foge.

Parafraseando Renato Russo "Uma menina me ensinou quase tudo o que eu sei...".

terça-feira, 21 de abril de 2020

Sobre a Tardis de lembrancinha


A quarentena me deixou um pouco nostálgica. Apesar de estar trabalhando normalmente (insatisfação detected), entrei no clima de introspecção e nesse ínterim, acabei resgatando velhos diários, e com eles velhas músicas, velhos filmes e pessoas antigas.
Tem sido bom, ouso dizer. Essa coisa de ressignificar e passar a lidar com as lembranças de uma forma diferente, e por que não dizer positiva?

Neste feriado, por exemplo, resgatei uma série antiga: Doctor Who, da qual passei a gostar tarde demais, o que felizmente me rendeu uma passagem ressignificada com um ex (claro, porque as melhores "passagens" envolvem um ex).
E este não era um ex qualquer: era um espécime original apegado à mãe, com o plus da mesada aos 20 e poucos anos (quando sugeri que ele arrumasse um emprego, a sogra respondeu que ele não precisava se preocupar em trabalhar enquanto ela estivesse viva - mamãe proverá).

Pois bem, pouco tempo antes de desistir de tentar, e sabendo que este ex era um adorador de Doctor Who, com a proximidade de um aniversário ou natal encomendei online uma miniatura da Tardis muito maneirinha (com luzes, sons, e portas que abrem e fecham) para presenteá-lo. Não aguentei: enviei o link pra que ele soubesse o que o estava a caminho e isso causou muita comoção e agradecimentos (acertei na escolha, uhu).

A Tardis chegou pelo Correio, eu embrulhei o pacote como manda o protocolo, mas antes de poder entregá-la tivemos a briga derradeira (aquela na qual fui acusada de machismo por não concordar em sustentá-lo pelo resto da vida, tal como a mãe se propôs a fazer). Terminamos.

Mas não antes de ele me cobrar a Tardis "Você nem gosta de Doctor Who, por que quer ficar com ela?".
Respondi de forma madura, obviamente "Eu compro o que eu bem entender com o dinheiro que ganho trabalhando. Caso queira uma igual, peça à sua mãe." (maduro, eu disse).
E esta foi a última vez que conversamos.

Quanto à Tardis, ficou de lembrancinha. E hoje eu gosto de Doctor Who o suficiente para merecê-la, caso alguém tenha algo a dizer.