maio 2020

terça-feira, 26 de maio de 2020

Sobre o meu modus operandi de tocar a vida


Eu poderia me acostumar a esta vida de EAD. 
Hoje assisti a aula de inglês do meu quarto, com um cobertor jogado nos ombros, chinelos fofinhos e meias multicoloridas, enquanto fazia carinho na orelha da minha cachorra e minha gatinha dormia no meu colo.
Ouvia ao longe a TV da sala e sabia que meu pai estava bem.
Não precisei me preocupar com o horário e nem se havia vaga no estacionamento.
E quando a aula terminou, fechei o computador e pulei imediatamente na cama pra assistir mais um episódio de The Ranch enquanto comia a batata smile que deixei assando e me dava água na boca.
Sem trânsito, sem trajeto, sem formalidades, sem maquiagem, sem roupa apresentável.

Excluindo argumentos políticos, econômicos e humanitários, no geral eu tenho lidado bem com a quarentena. Muito provavelmente porque minha rotina não foi alterada para o modo home office. Na verdade, tenho tido muito mais trabalho do que o habitual na indústria alimentícia da qual sou funcionária há 8 anos. Como fui uma das únicas a não aderir ao trabalho remoto (por motivos de: não quero trazer os problemas de lá pra dentro do meu santuário particular), passo o dia sozinha ouvindo Queen, Janis Joplin e Aerosmith no meu próprio volume, e nem sinto passar o dia por causa da demanda (sempre urgente) acumulada.

Eu poderia viver bem sem toda a pressão das baladas aos finais de semana, e dos "rolês" (eu sou malandra e falo "rolê") instagramáveis obrigatórios no sábado a noite. Dê-me meus livros, meus filmes e séries old school, minha playlist anos 80', um teclado pra escrever, algumas fotos pra relembrar, e três ou quatro amigos para me preocupar. 


Aflijo-me com a situação do mundo, das vidas perdidas, da fome, do desamparo, e todas as noites rezo ao meu Deus amigo para que tenha misericórdia do nosso planeta e cesse tanto sofrimento.
Mas hoje eu não vou reclamar. Hoje eu não sou um problema. Meu pai está bem na sala, assistindo TV. Tive um bom desempenho na aula e no meu trabalho. Estou gozando o prazer da minha própria companhia no meu quarto. Eu diria que aprendi um novo jeito de viver nestas últimas semanas, mas na verdade eu sempre soube que este era o meu modus operandi de tocar a vida. E me sinto completamente adaptada e familiarizada a ele neste momento. Espero que depois que as coisas voltarem ao normal (se for possível voltar ao normal após uma vivência como esta), eu possa continuar aqui. 


Mas nisso eu só vou pensar mesmo quando for preciso. Hoje eu tenho apenas coisas a agradecer. Aqui sozinha no meu quarto.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Sobre a morte que é inexorável


"A morte quando vem é inexorável, é mal-educada, grosseira. Entra e não pede licença. E colhe uma vida tão desinteressadamente como quem colhe uma amora no pé.
André se espalhou em mais sete pessoas. Doou seus órgãos. (...) Doou-se em morte, fazendo estranhos não perderem a fé. André continuou vivo. Porque, afinal de contas, morrer é só não ser visto."

Carmen O. in: Tardes de maio. Novo Século. 

Sobre mecanismos de defesa sofisticados


"Ela sorriu de novo. Um verdadeiro e sofisticado mecanismo de defesa.
Esquecer. Guardar. Ignorar. Lá, bem no fundo do baú do meu hipocampo. Abafem o meu sistema límbico. Eu quero, eu preciso negligenciar tanta dor. Eu deprimo. Eu demencio. Eu me esqueço de você. Eu me esqueço dela. Eu me esqueço da vida. Mas ninguém é imune a toque. Ao que nos resgata de nós mesmos.
Como diria Alexandre Pope: "Quão feliz é o destino de um inocente sem culpa. O mundo em esquecimento pelo mundo esquecido. Brilho eterno de uma mente sem lembrança. Cada orador aceito e cada desejo renunciado." 

Carmen O. in: Tardes de maio. Novo Século.

Sobre uma existência digna para o meu óleo de coco bahiano


Passei minhas últimas férias na Bahia, pouco tempo depois de ter feito a maior idiotice capilar que poderia: (tentei) descolorir meu cabelo que já acumulava milhares de camadas de tinta preta ao longo dos anos. Minha cabeça passou bons meses carregando pura palha laranja (sim, porque era óbvio que jamais daria certo).

Pois bem, na Bahia, tomada pela vergonha dos cabelos porosos, úmidos e cheios de maresia, bem como seduzida com o glamour de Trancoso e das famosas posando seus fios fantásticos para o Instagram, veio a calhar o encontro com uma guia local que contou visitar periodicamente uma aldeia indígena e trazer de lá diversos produtos medicinais para venda a turistas (alguns prometendo inclusive a cura para o câncer). 

Minha maior demanda no momento era a eterna rinite (e para isso pedi um vidrinho de óleo de menta milagroso que de fato possui o poder de "destravar" o nariz com apenas algumas gotas friccionadas e inaladas diretamente das mãos).
A segunda demanda de urgência era claramente meu cabelo cor de laranja seco (qualquer um poderia afirmar isso apenas de olhar). Então comprei um segundo frasco de óleo de coco puro.

Lembro-me de ter adquirido no passado um vidrinho deste produto em uma perfumaria de São Paulo por apenas 3 reais, mas de não ter obtido muito sucesso no uso. O que me impressionou na Bahia foi o fato de que aquele óleo de coco "dormia". Sim. A guia (que tinha o cabelo mais longo e brilhante do mundo) mostrou-nos como as características puras do óleo o faziam "esbranquiçar" sob temperaturas baixas (justamente por ser extra-virgem, ele se solidifica em temperaturas abaixo de 25º, retornando à consistência da polpa do coco). Levei pra casa. Mas não sem antes ouvir atentamente as dicas de uso.

A nossa simpática guia (de verdade, dava vontade de guardar num potinho) nos aconselhou a deixar o produto agir no cabelo por algumas horas, e como sugestão, mencionou que poderíamos dormir com ele nos fios, lavando-os pela manhã.
E, à parte, mencionou também o modo como ela própria obtinha os seus resultados: "eu sempre passo antes de sair de casa quando fico o dia todo pescando em alto mar".
A partir desta colocação eu não consegui ouvir mais nada. 

Ah, que qualidade de vida! Que realidade paralela surreal é essa encontrada em locais como a Bahia? Depois daquela referência a dias em alto mar, neguei-me veementemente a dar ao meu óleo de coco alguma existência indigna, quase como se estivesse desculpando-me por tê-lo tirado de Trancoso para uma vida de sofrimento nos cabelos porosos de uma paulistana que acorda às 5h30 e vai dormir 00h00 dia após dia. Não, ao meu querido óleo de coco foi prometida uma jornada que, dentro das possibilidades, remetesse ao seu primórdio no alto de um coqueiro banhado pelo sol nordestino.

É o que fiz hoje (e praticamente em todos os sábados luminosos e límpidos depois daquela viagem), quando carinhosamente aplico meu óleo de coco nos cabelos e, feliz, passo o dia lavando e estendendo minhas roupas ao sol. A minha versão paulistana de pescar em alto mar na Bahia.

sábado, 2 de maio de 2020

Sobre amores eternamente náufragos



"O movimento vaivém nas águas-lembranças dos meus marejados olhos transborda-me a vida, salgando-me o rosto e o gosto. 
Sou eternamente náufraga , mas os fundos oceanos não me amedrontam e nem me imobilizam.


Uma paixão profunda é a boia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas."


Conceição Evaristo

Sobre amar o mundo como ele é (e não apenas tolerá-lo)



“Boa parte da tradição filosófica sugere, para que a vida seja boa, certa reconciliação com o mundo, com o real. Ou seja, estar bem com o mundo – até mesmo amá-lo – como ele. Entre tantos que sugeriram ideias semelhantes, podemos destacar o amor fati de Nietzsche, o que me faz pensar na seguinte imagem: alguém dando um mergulho em águas cristalinas numa praia do Nordeste brasileiro. E diante daquela maravilhosa oceânica que ele contempla, num determinado momento tem a sensação de que gostaria de suspender a passagem do tempo. Pois o mundo ali parece completamente adequado e conveniente. A pessoa simplesmente contempla o mundo onde está inserida e que lhe faz bem, e se sente reconciliada com ele, com aquela realidade que se apresenta como amável naquele momento. Poderíamos, então, com facilidade, identificar esse instante da vida como um momento feliz. Não é bem isso que o filósofo sugere apenas, mas sim que talvez tenhamos que amar o mundo como ele é sempre. Não somente tolerá-lo.”

Clóvis de Barros Filho; Leandro Carnal in: Felicidade ou Morte. Papirus 7 Mares.

Sobre as tristezas das vidas que preterimos



“O aumento de alguma lucidez torna as escolhas progressivamente complexas, menos óbvias e portanto, mais difíceis de serem operacionalizadas. Há portanto, certo sofrimento no momento da escolha. E a dificuldade em escolher que aumenta quanto maior o número de variáveis de que disponibilizamos para escolher se traduz num sentimento desagradável. O sentimento próprio daquele que percebe que a vida depende da sua escolha e liberdade e não sabe, não tem certeza, do melhor caminho, e fica com medo de se arrepender. E o que é mais incrível: feita a escolha, esse sentimento não desaparece. Porque, curiosamente, nunca sentimos as tristezas das vidas que preterimos. Sentimos só as tristezas da vida que escolhemos viver.”

Clóvis de Barros Filho; Leandro Carnal in: Felicidade ou Morte. Papirus 7 Mares.

Sobre a felicidade fugaz



“A praia do Nordeste é perfeita não porque aquele instante possa ser permanente, mas porque ele é fugaz.  Assim como uma flor de verdade é superior à flor de plástico, ainda que esta possa ser mais firme, mais duradoura e até, numa foto, se mostrar mais bonita que a flor dita verdadeira.”

Clóvis de Barros Filho; Leandro Carnal in: Felicidade ou Morte. Papirus 7 Mares.

Sobre a felicidade idealizada que acaba por se tornar real



“Aquela praia do Nordeste, então, se torna não apenas feliz pelo momento em que alguém submerge naquelas águas lustrais, mas pela lembrança que essa pessoa constitui em família, pela foto que registra o momento e que, ao ser observada ao longo dos próximos anos, trará uma memória permanente, biográfica, feliz. E fará parecer que essa felicidade projetada e idealizada num curto momento tornou-se uma felicidade real.”

Clóvis de Barros Filho; Leandro Carnal in: Felicidade ou Morte. Papirus 7 Mares.

Sobre elaborar vivências



“Felicidade apresenta muita construção e elaboração de memória. O primeiro beijo romântico como lembrança; naquele momento é mais medo do que prazer. A lua de mel aumenta de importância à medida que o casamento entra em rotinas e desgastes. Quando prosperamos materialmente, em geral, pensamos com certa poesia nas dificuldades daquela época anterior, menos abastada. Assim, tudo vai sendo elaborado de forma que se criem na mente os processos de felicidade ou infelicidade.”

Clóvis de Barros Filho; Leandro Carnal in: Felicidade ou Morte. Papirus 7 Mares.

Sobre continuar ouvindo o que não se diz mais



“Não é o tipo de coisa que você ache que vá lhe fazer falta. Talvez você nem mesmo perceba tudo isso naqueles milhares de vezes (...) Talvez você nem mesmo tenha notado.
Mas nota quando ele não está mais ali. Nota muitos lugares onde ele não está mais e ouve muitas coisas que ele não diz mais.
Eu ouço.
Ouço o tempo todo.”

Nathan Filer in: Onde a lua não está. Rocco.

Sobre os átomos que agora fazem parte de outra pessoa



“ - Existe alguma parte do maior físico do mundo sentada entre nós agora? (...) Para o que estão interessados, a resposta é sim, e não só um ou dois átomos que antigamente faziam parte de Einstein estão atualmente, pelo menos por enquanto, fazendo parte de vocês. Neste momento. E não só de Einstein, mas de Júlio Cesar, Hitler, o homem das cavernas, dinossauros...
A sineta tocou, interrompendo sua curta lista.
Mas a ela eu acrescentei outra pessoa.”

Nathan Filer in: Onde a lua não está. Rocco.