agosto 2020

sábado, 8 de agosto de 2020

Sobre a véspera do Dia dos Pais


Fiz um pedido errado no Ifood.

Eu não tomo refrigerante há alguns anos e mesmo assim pedi uma garrafa para acompanhar meu gnocchi com almondegas neste sábado.

Eu não tomo refrigerante desde que resolvi barganhar com Deus. Prometi que se ele mantivesse a vida do meu pai, mesmo diante da doença grave com a qual foi diagnosticado naquele momento, eu entregaria a Ele meu grande vicio da época e pararia de beber os quase dois litros de refrigerante que consumia a cada dia.

E mesmo assim, sem nem perceber, pedi uma garrafa de soda hoje.

O que veio a calhar porque na ânsia de fazer valer os abusivos R$ 7 que paguei na garrafinha de 400ml, eu rapidamente pensei em um modo de me livrar da culpa e transformar aquele refrigerante em um drink (desta forma minha moral não ficaria abalada em consumi-lo para lidar com este dia). Misturei licor com soda e aqui estou, com um teclado sob os dedos tentando anestesiar toda a frustração.

Os últimos meses no trabalho tem sido uma droga, a situação mundial é desoladora, a cada dia se vê mais uma triste noticia na TV e eu não consigo parar de remoer meu relacionamento com meu pai na véspera do Dia dos Pais.

 Meu pai parece não ficar satisfeito enquanto todos à sua volta não estiverem se sentindo miseráveis (talvez tanto quanto ele?). Ele passou por bons traumas, desde a perda do pai suicida, até a morte do irmão gay com AIDS nos anos 80 com apenas 27 anos (abafada até hoje por uma pneumonia).  Estas vivências são os parâmetros dele.

O histórico dele começou com minha mãe. Proibiu-a de trabalhar e estudar ao se casarem, cometeu traições, ameaçou suicídio quando foi descoberto, e ao ser perdoado, começou a convidar mulheres aleatórias pra andar na garupa da moto dele sem o mínimo cuidado em esconder ou justificar porque minha mãe, sem estudo, sem trabalho e com dois filhos pequenos nos anos 90 dificilmente o deixaria. Durante 30 anos ele a transformou na histérica ciumenta, escandalosa e acomodada aos olhos de todos. Foram 30 anos até que ela finalmente resolvesse se libertar e ir embora.

Na minha vida não foi tão diferente. Desde pequena ele aprendeu a controlar pelo medo. Quando eu, adolescente rebelde, comecei a questionar o que ele dizia, ele passou a controlar por privação. Depois por chantagem. Hoje, com gritos, agressões verbais e outras psicológicas. Minha irmã não aguentou por muito tempo e viu no casamento aos 25 anos uma forma de escape. Separou-se em menos de  1 ano e hoje vive e algum lugar que eu desconheço. Ninguém nunca sabe onde ela está, exceto por raras ocasiões em que ela aparece para cumprir seu papel social, em Natais ou aniversários.

Eu me lembro de dizer “eu te amo” pra ele no meu aniversário de 15 anos e ouvir a resposta debochada de que eu estava querendo aparecer na frente de todos. Quando, feliz por ter acessado meu boletim na faculdade e constatado perto da 00h00 que tinha conseguido a média do último semestre para me formar depois de 5 difíceis anos de graduação, gritei de felicidade e ao invés de me dar parabéns, ele me mandou calar a boca porque já era tarde. Quando chego cansada do trabalho ele me chama de preguiçosa. Quando começo a desinfetar as compras ele me chama de paranoica. Se me percebe satisfeita por qualquer motivo, arruma um assunto para me criticar. Por diversas vezes pensei em deixa-lo sozinho, mas com a doença progressiva veio também minha culpa em ir embora. E eu fui ficando para ajudá-lo. Para aproveitar a vida dele enquanto posso. E agora na boca dele me tornei a solteira que ninguém quer, a que não vai dar netos, com quem o sobrenome da família vai morrer.

Ele nunca me deixou faltar nada material e até fez seus sacrifícios. Às vezes me sinto culpada por estar frustrada em relação a ele.  Em outras penso que a culpa de algumas das minhas limitações pessoais é dele e encontro razão para todos os sentimentos ruins que ele me desperta.

Eu pensei em beber aquele refrigerante, mas tenho medo de brincar com Deus. Então disse a Ele que se misturasse a soda com licor, estaria bebendo um drink e deste modo poderia manter a nossa barganha.

O licor na soda me ajudou a lidar um pouco melhor com a minha frustação hoje. É como se eu tivesse matado um pouquinho meu pai. Mas também o salvei.

sábado, 1 de agosto de 2020

Sobre precisar falar sobre a Gi


Eu preciso falar sobre a Gi.

Mas falar sobre ela não pode ser durante a semana, no meio da preocupação e da correria.
Não pode ser enquanto estou tensa com o horário para acordar amanhã, ou desconfortável em algum lugar possivelmente infectado com coronavírus.

A Gi merece uma reflexão feita numa noite de sábado. E se a pandemia exige, com uma xícara de mate quente do lado, enquanto na TV passa meu filme preferido. Deve ser feita no conforto do meu pijama de algodão, na segurança da minha casa. Sem preocupações, sem pressa.

Porque é assim que ela sempre me fez sentir: segura.

Mesmo quando eu nem a conhecia. Quando eu, num final de 1º de janeiro, decidi que já não podia mais continuar levando a vida que vivia, ou me perderia. Me arrisquei e publiquei. Ela leu. E corajosa, aceitou me salvar.

Antes mesmo de nos conhecermos eu sabia que ia gostar dela. Pelos comentários divertidos e inteligentes nas redes sociais, pelo comprometimento e devoção que demonstrava com sua família, e pelo carinho que os amigos dedicavam a ela. Ao nos conhecermos veio a definitiva certeza.

Nos atrasamos. Passamos vergonha. Elaboramos planos para otimizar nossa situação. Compartilhamos a mesma tendência a evitar confusões (sem contudo sair por baixo). E o gosto pela sonequinha da tarde.
Com a Gi eu visitei a Toca do Raul, e compartilhei meu crush no cara que não sabia contar. Com ela eu corri pela areia com as malas na mão para garantir que sentássemos no mesmo banco na volta pra casa. E foram muitas voltas. Foram pizzas de pequi no cerrado, sacolés de coco no Rio de Janeiro, viagens de balão em Boituva, sorvetes de feijão na Liberdade, trilhas de mais de 10km em Goiás. Tardes preguiçosas sob o sol na areia, cervejas às 10h da manhã em festivais, viagens de trem pela cidade... Mas falar sobre tudo o que já vivemos não era meu objetivo aqui.

A Gi me faz querer ser o melhor que posso. De tão bom coração, às vezes me constrange com todas as minhas imperfeições. Ela é tolerante, generosa, bondosa, justa. Nunca diz não. Ouve. Ajuda (receber uma mensagem dela faz uma diferença gigantesca no meu dia). Escancara sua humanidade e nem por um único segundo durante esses anos me fez sentir em dúvida sobre o fato de poder contar com ela para o que for necessário.
Ela não pressiona, não julga. Entende como as pessoas são e sempre faz o melhor para que elas se sintam bem. Ela acalma, acolhe, aceita. 

Frequentemente penso que não merecia ter uma pessoa tão incrível na minha vida. Sempre fico com a sensação de não estar retribuindo o suficiente toda a dedicação que ela tem comigo.
Vocês já conheceram alguém assim? Que de tão surreal faz contraste com tudo o que falta em você mesmo?
Eu lamento não ser parecida com ela. Queria ser mais afetuosa, mais aberta, estar mais presente, ter estado em seus aniversários. Faço planos para melhorar, mas toda hora aparece um "problema" (uma chuva, uma falta de dinheiro, uma preguiça, uma pandemia). E mesmo assim ela nunca deixou de estar lá pra mim.

Ela me inspira diariamente, tanto por seu exemplo, quanto pela fé que demonstra em mim. E todas as formas de agradecimento nas quais consigo pensar me parecem insuficientes para a grandeza da pessoa que a Gisele é.
É por ela que eu torço, vibro. É por ela que procuro quando tenho notícias boas, e quando preciso de consolo.
É pra ela que eu desejo toda a felicidade que o mundo tem a oferecer. Que nada te machuque. Que a vida seja boa pra você. E que a luz do seu coração ilumine todos os seus caminhos. 

Gi, eis seu texto. O que precisava vir do coração. Apesar da demora, saiu.

Amo você. Obrigada por ter lido aquela publicação.