Sobre o Lado B daquela viagem à Ponta Grossa

domingo, 23 de maio de 2021

Sobre o Lado B daquela viagem à Ponta Grossa


Esta foi minha última viagem "de verdade" antes da pandemia surgir e trazer todo esse pesadelo que temos vivido.

Eu teria a oportunidade de passar um final de semana com a Paty, uma de minhas mais queridas amigas. E ambas atravessávamos aquele período em que se reaprende a viver depois de enfrentar experiências difíceis. Era a oportunidade de exorcizarmos nossos demônios.

E de certo modo a tarefa não parecia difícil, a começar pelo nome do atrativo: "Buraco do Padre", que ficava vizinho à "Fenda da Freira". Localizados na cidade de "Ponta Grossa", na região Sul do país, que é na minha opinião, o lugar onde mais se concentra gente bonita e com sotaque gostoso de ouvir por metro quadrado. E o plus: eu tinha um crush antigo no guia que nos acompanharia. Sim, eu estava ansiosa. Mas de um jeito bom.

Começou comigo e a Paty nos encontrando com um quase atraso numa sexta-feira à noite, depois de trabalhar durante todo o dia. Tivemos a oportunidade de elogiar o novo corte de cabelo uma da outra por 5 minutos antes de cairmos em sono profundo na poltrona do ônibus que nos faria chegar ao interior do Paraná na manhã seguinte.

Depois de 3 anos fazendo este tipo de viagem (ouso dizer todos os meses), posso afirmar que considero dormir no ônibus algo confortável. Não digo o mesmo de viagens de avião. Essas são um inferno. As vezes penso nos países distantes que gostaria de conhecer um dia, e um grande sentimento de desânimo me abate quando lembro do sofrimento do trajeto necessário até lá. Pois bem, se dormir no ônibus já é algo corriqueiro pra mim, por outro lado acordar no destino no dia seguinte, com o rosto oleoso, sem escovar os dentes e com 40 pessoas ao seu redor em um ônibus fechado, de vidros suados, é algo com que jamais me acostumarei (sobretudo em um mundo pós-covid-19).


Talvez tenha sido esse desconforto (ou o nervosismo que sentia enquanto o dito crush repassava [pelo menos 5 vezes] as orientações sobre o que deveríamos fazer com nossa bagagem antes de mudarmos de transporte) que me fizeram iniciar uma série de piadas (sem graça e sem fim) que foram percebidas e irritaram a maioria das pessoas presentes, e como lição de vida (talvez por intervenção divina) causaram uma das maiores vergonhas daquele final de semana. Mas voltemos pra cá mais tarde...

Foi um dia gostoso. Ensolarado, mas não muito quente. Com trilhas, cachoeiras, araucárias por todos os lados, restaurantes pitorescos com cara de fazenda onde com certeza mora uma vó, e um curral de ovelhas deveras bucólico. Fizemos trilha, tiramos fotos, debochamos de pessoas, tiramos mais fotos, gravamos vídeos (que têm me ajudado a sobreviver durante a quarentena) e evitamos a água (por frio e também por estarmos vivendo "dias não-úteis" do mês). A cereja do bolo era o calorzinho no coração toda vez que olhava para o crush e, às vezes, percebia o olhar dele de volta (claro que, no caso dele, o monitoramento tratava-se de algo puramente profissional e não infectado por intenções duvidosas como as minhas - uhh).

Tudo correu bem. O Buraco do Padre é lindo (e frio). A Fenda da Freira um pouco claustrofóbica, cheia de teias de aranha [comentário infame, mas honesto] e de difícil acesso (mentira: a parte mais desafiadora pra mim foi descer a escadinha de 5 degraus de costas, puramente pelo medo da altura de 3 metros, no máximo). Mas o que me causava ansiedade (e minhas famosas borboletas no estômago) era a noite (TODO MUNDO ESPERA ALGUMA COISA DE UM SÁBADO À NOITE), quando jantaríamos todos juntos (e normalmente quando coisas malfeitas acontecem em situações nas quais jovens se reúnem longe de casa).

Aqui abro um parêntese: com todos esses termos atuais para definir a orientação sexual das pessoas, me atrevo a dizer que talvez eu seja demissexual. Eu vejo corpos, considero-os bonitos, mas só sinto algum tipo de atração ou desejo por eles a partir do momento em que os atribuo algum significado - normalmente quando passo a admirar alguma característica de seu dono. E depois de alguns encontros agradáveis, havia muito que eu admirava naquele crush.

Eu me sentia ansiosa naquela noite. Apesar de saber que nada aconteceria porque seria totalmente antiético (meu crush estava a trabalho) e eu jamais (ninguém comete o mesmo erro pela segunda vez) seria a sem noção a forçar alguma coisa. Mas minha vontade de viver depois de alguns meses tristes me fazia sentir o rosto quente enquanto o observava andando perto de mim. À medida que a noite se aproximava, eu tentava ser charmosa, misteriosa e parecer inteligente pra ter pelo menos um tiquinho só da atenção dele.

Mas como este texto faz parte da minha série LADO B, é de esperar que as coisas boas duraram muito pouco: chegando ao hotel, enquanto todos retiravam suas malas da recepção para subir aos quartos e se prepararem para o jantar, minha primeira triste constatação: no meio de todas as minhas piadas da sessão da manhã, entendi pouco (ou nada) sobre as orientações e deixei toda minha bagagem no ônibus. A segunda constatação: o ônibus não estava no hotel. Estava na garagem. A terceira constatação: a garagem ficava do outro lado da cidade. Tomada pela vergonha, e querendo ser o mais discreta possível, tentei resolver o problema diretamente com a recepção, o que obviamente não funcionou. A solução: acionar o crush e confessar, com minha cara não-lavada cheia de terra da trilha da qual tínhamos acabado de retornar, toda minha falta de atenção. Senti que tinha deixado minha dignidade dentro do Buraco do Padre naquela tarde.

Sem demonstrar nenhuma compaixão, me oferecer um abraço ou um consolo carinhoso, ele pediu ao motorista que abrisse o ônibus na garagem, e que eu chamasse um Uber. Quando começava a me encher de esperança pela viagem até lá (ele sentaria ao meu lado e seguraria minha mão?), o carro chega, eu entro, a Paty entra, o motorista entra, e ele fica pra trás, observando da escada em frente ao hotel. "Ué, você não vai com a gente? Não, eu preciso me arrumar para acompanhar o pessoal no jantar". E foi assim que terminei minha noite de sábado [pelo menos pensei que seria]: envergonhada, suja com todas as teias de aranha da Fenda da Freira, passando frio dentro de um Uber que rodava por Ponta Grossa, e acompanhada não do crush, mas da Paty, do motorista do ônibus, e também do motorista do Uber (que foram muito gentis nos ajudando).

Pegamos nossas coisas na garagem escura enquanto a Paty tentava organizar suas vontades contraditórias de me xingar e de fazer piadas sobre mim. No retorno ao hotel, já sem ânimo para jantar (mas ainda assim com fome), tentamos encontrar outro restaurante (chegar ao fim do evento seria mais uma vergonha), mas como não fomos bem sucedidas nisso, entramos e nos sentamos na ponta da mesa onde todos estavam reunidos animadamente, com os pratos já vazios à frente.
Quando nossos hambúrgueres chegaram, o crush insistiu que pulássemos algumas cadeiras para comermos perto dele. Sentindo a esperança retornar ao coração, me arrastei pra perto, só pra receber o nocaute: um bichinho roliço, gorducho e verde se movimentando no meio da alface no prato.

E foi assim que me tornei a exceção à regra e deixei de esperar qualquer coisa de sábados à noite. Desculpe, Lulu Santos.

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