Sobre a morte que não é capaz de apagar uma vida

sábado, 1 de janeiro de 2022

Sobre a morte que não é capaz de apagar uma vida


Meu avô nos deixou nesta última semana do ano, parece-me que aproveitando-se do período de encerramento de ciclos. Ele partiu depois de um problema de saúde inicialmente simples, mas que, a meu ver, foi o único argumento que ele precisava para desistir de sua existência terrestre depois da partida da minha avó há dois anos. Apesar de ele não falar muito sobre ela neste período, sei que 60 anos não são 60 dias e que a ausência dela o impactou profundamente.

Um mês antes de adoecer ele contou ter sonhado com ela, e que ela parecia feliz. Do mesmo modo durante o adoecimento, ainda muito lúcido, dizia vê-la no quarto, sorrindo. O mesmo aconteceu no hospital, quando ela o acompanhava nas internações. Acredito que ele sabia que sua missão estava se encerrando e apesar de todos os dias pedir alívio a Deus, imagino que ele ainda tinha medo do momento da despedida, motivo pelo qual pedia todos os dias para que a porta do seu quarto ficasse sempre bem aberta.

Algumas vezes eu o observava dormir apenas para me certificar de que ele respirava. E em outras eu ficava olhando de longe seus olhos atentos e os lábios que se mexiam em resposta a algo que eu não era capaz de ver.

Quando percebi o curso que sua doença estava tomando, não sinto arrependimento ao lembrar do meu desespero frente à resignação e entrega em seus olhos, e implorava, com o coração apertado e a voz alterada, para que ele se esforçasse para levantar da cama, que pegasse a viola, que lesse comigo a bíblia que tinha sempre em mãos. Sua única resposta era me pedir perdão por ser fraco - embora tenha vivido como um verdadeiro herói durante todas as batalhas que enfrentou para cuidar de sua família.

Eu fico imaginando se suas visões descontruíram, nos passos finais de sua jornada terrestre, o que acreditou a vida inteira baseado em sua religião. Será que perceber minha avó, sua companheira de uma vida, ao lado dele, o ajudou a desapegar-se e despedir-se?

Espero de todo o coração que sim, porque em nenhuma das despedidas que sofri eu fui capaz de ver tantos sinais. Seja no neto de 3 anos que perguntou, horas antes de sua partida, quando já estava inconsciente, se era verdade que o avô havia nos deixado. Ou na luz da varanda de casa que se acendeu dois minutos antes que eu recebesse a notícia (aquela sobre a qual sempre brigávamos para que ficasse desligada por causa do aumento da conta de energia).

Mas a mais bonita de todas é a imagem que quero levar para sempre em minha mente, seja verdadeira ou não. Para ela, eis um contexto: em sua juventude, ele e minha avó construiram com as próprias mãos uma casa da qual saíram a contragosto em razão da dificuldade que suas escadarias provocavam frente às limitações da idade avançada. Foi nesta casa que passei todas as minhas férias escolares, na qual deposito a maior parte de minhas memórias afetivas, e onde inúmeras vezes eu fui convidada a me juntar a eles na varanda para, sentada nas poltronas, observar a chuva chegando. 

Foi um desses lindos temporais de verão que caiu no exato momento em que seu corpo era deixado em repouso ao lado do de minha avó, como eles sempre desejaram. Neste mesmo dia, mais tarde, recebemos a ligação de uma vizinha da antiga casa contando emocionada que, ao passar correndo por ela para fugir do temporal que se aproximava, pode ver meus avós na varanda, juntos, observando no horizonte, como tantas vezes fizeram durante toda a vida, a chuva que se aproximava.

A morte, apesar de tê-lo roubado de nós, não foi capaz de apagar sua vida. As cordas da viola caipira já não vibram, mas sua música continuará ressonando em meu coração para sempre.

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