Sobre a carta que nunca foi enviada

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Sobre a carta que nunca foi enviada


Final de tarde preguiçoso, sou movida por um desejo enorme de mexer nos velhos livros. Encontro um texto ao qual tive acesso há quase uma década atrás, durante os primeiros semestres da graduação, e que guardei porque me fez lembrar de você instantaneamente (apesar de todos os anos sem vê-lo já naqueles dias).

Eu aguardo todo esse tempo e ainda não tive a oportunidade de te dar a resposta que você merecia ter (de acordo com a minha concepção do quão desafiador foi o modo como me fez aquela pergunta - na verdade, como me disse o que eu deveria fazer, com toda a sua simbólica autoridade e baseado apenas em suas crenças).

Você sabe que eu sempre me inspirei em você. Sabe que a sua figura foi decisiva na formação da minha personalidade de quase-adolescente-questionadora-opositiva. Ou talvez não. Talvez eu tenha guardado bem escondido, as always, a gigantesca importância de você respirar, e das suas piadas, e do seu frequente mau-humor e de como você era lindo e imprevisível e tudo o que eu mais queria era tocar você, apesar de todas as impossibilidades.

Eu queria voltar. E por mais que esta possibilidade objetivamente exista e tecnicamente estejamos a menos de 3km de distância, eu não sou mais a mesma, e viver daquela maneira seria uma traição contra meu próprio novo modo de enxergar o mundo, que foi se formando um pouco por causa de você e das coisas que eu não queria ser. Irônico que o maior obstáculo para o meu desejo, que habita em você, seja eu mesma. 

Sinto não ter coragem para suscitar um assunto tão antigo assim de forma direta - aprendi que algumas coisas devem ser apenas ignoradas. Então, de forma fantasiosa te conto a minha visão sobre o assunto e te dou a resposta que ficou entalada na minha garganta naquele dia (a qual a própria urgência revela a importância que você ainda tem na minha vida). Apesar de todos os julgamentos e possibilidades vencidas, seria um prazer voltar a dividir a vida com você.


DEUS SEGUNDO SPINOZA


“Pára de ficar rezando e batendo o peito! O que eu quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti.
Pára de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa. Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti.
Pára de me culpar da tua vida miserável: Eu nunca te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau. O sexo é um presente que Eu te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer.
Pára de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho… Não me encontrarás em nenhum livro! Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais me dizer como fazer meu trabalho? 
Pára de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor. 
Pára de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. Se Eu te fiz… Eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio. Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como posso te castigar por seres como és, se Eu sou quem te fez? Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso? 
Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei; essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram culpa em ti. 
Respeita teu próximo e não faças o que não queiras para ti. A única coisa que te peço é que prestes atenção a tua vida, que teu estado de alerta seja teu guia. 
Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é o único que há aqui e agora, e o único que precisas. 
Eu te fiz absolutamente livre. Não há prêmios nem castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro. Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno. Não te poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso te dar um conselho. Vive como se não o houvesse. Como se esta fosse tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim, se não há nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei. E se houver, tem certeza que Eu não vou te perguntar se foste comportado ou não. Eu vou te perguntar se tu gostaste, se te divertiste… Do que mais gostaste? O que aprendeste? 
Pára de crer em mim – crer é supor, adivinhar, imaginar. Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti. Quero que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho no mar. 
Pára de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra tu acreditas que Eu seja? Me aborrece que me louvem. Me cansa que agradeçam. Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo. Te sentes olhado, surpreendido?… Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me louvar. 
Pára de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim. A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas. Para que precisas de mais milagres? Para que tantas explicações? Não me procures fora! Não me acharás. Procura-me dentro… aí é que estou, batendo em ti.” 

Einstein, quando perguntado se acreditava em Deus, respondeu: “Acredito no Deus de Spinoza, que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe, e não no Deus que se interessa pela sorte e pelas ações dos homens”.


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