Sobre a terceira amizade em Aristóteles

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Sobre a terceira amizade em Aristóteles


Hoje à tarde tocou "Palpite". Ouvi pela janela no rádio do meu vizinho, que tem um gosto muito refinado pra música (às vezes eu desligo meus roquenrrous pra ficar ouvindo a seleção de MPB dele, que é de fato fantástica).

Fazia tanto tempo que eu não ouvia essa música. Talvez a última vez tenha sido em 2003, quando a novela "Por amor" passou no Vale a Pena Ver de Novo, eu acho. Naquela época eu estava prestes a completar 15 anos, e tinha acabado de fazer uma amizade-pra-vida-toda.
Conheci minha amiga-irmã quando minha vida ainda se resumia à escola e igreja, logo depois de passar do posto de coroinha à catequisada e começar a andar com o grupo de xovéns. Foi mais ou menos nesta época que tive minha primeira paixão platônica avassaladora (que rende boas histórias - e constrangimentos - até hoje).

Minha amiga-irmã foi minha alma-irmã porque espelhava exatamente como eu me sentia em relação ao mundo, às pessoas, às expectativas de futuro. Uma mescla de desejos fantasiosos da vida que obviamente deveria ser maravilhosa à nossa maneira (e claro, ela o é neste futuro real, mas completamente diferente do imaginamos naquela época).

Eu me recordo claramente dos primeiros momentos que compartilhamos. Foi em uma querrrrmesse, quando descobrimos que nossos alvos de afeto eram amigos, e instantaneamente nos tornamos amigas também.

Lembro de me sentir, pela primeira vez, extremamente adulta quando fiquei na rua até mais tarde sem a supervisão dos meus pais, e que em uma dessas noites, dei meu primeiro beijo e fui correndo contar pra ela. Houve uma festa em que, ao ser abraçada por um garoto muito popular na época, eu praticamente flutuei enquanto via ela vibrando por mim. Ainda consigo sentir o cheiro das velas queimando quando me sentava ao lado dela nos bancos da igreja. Se eu me concentrar, dá pra lembrar do sabor dos lanchinhos nos retiros espirituais dos finais de semana.

Durante a semana depois da aula, nossas tardes eram dedicadas à novela "Por Amor" na sala da avó dela, enquanto registrávamos quantas vezes havíamos sido alvo dos olhares de nossos afetos. Nas tardes de sábado íamos até a famigerada locadora de vídeo e passávamos o resto da noite vendo filmes de terror na sala da minha casa. Quando finalmente chegava o domingo, as tardes muitas vezes eram usadas para compartilhar lágrimas meio escondidas frente às expectativas frustradas dos nossos amores platônicos.

Mas não foram só as lágrimas que compartilhamos: foram os amigos, as risadas, os bilhetinhos à mão, os diários. Foi o orgulho quando nos perguntaram se éramos irmãs, e ao respondermos que éramos amigas há mais de 10 anos, sorriram e disseram que então éramos irmãs sim. Foi também o sentimento frequente de que éramos muito diferentes das pessoas à nossa volta e nunca nos encaixamos perfeitamente no lugar onde estávamos inseridas. Foi a vontade de conhecer o mundo, de ganhar conhecimento, de obter sucesso e viver a vida como bem entendêssemos (e daí que fosse completamente diferente do que imaginamos quando éramos crianças?).

Ter compartilhado tudo isso com alguém que ecoava todos os dramas de crescer e experienciar a adolescência traz calor e saudade até mesmo dos momentos mais tristes.

Uma vez, já adulta, me confundi em relação ao que sentia por uma pessoa que conheci em uma situação muito satisfatória. A lembrança da situação feliz que compartilhei com tal pessoa me fez associá-la à sensação de satisfação, como se a causa da felicidade fosse este indivíduo. Isso, é claro, acabou muito mal.
Em relação à minha amiga-irmã, eu acredito que tenha sido exatamente o contrário: todas as situações e lembranças só foram/ são felizes porque estavam sendo compartilhadas com ela.

Eu lamento ter mudado. Eu lamento não ter lidado bem com algumas coisas, de ter tido pouca paciência, de ter achado que as coisas certas eram as que eram feitas à minha maneira. Queria ter podido ajudar mais, e ter feito diferença como ela fez na minha vida.

Dia desses estava lendo em um blog algo sobre a "Amizade em Aristóteles", que enumera 3 motivos pelos quais uma amizade se constrói. Ela pode se desenvolver por 1) utilidade de uma pessoa à outra, e 2) por prazer (compartilhar interesses e atividades em comum). O problema desses dois motivos é que a amizade acaba quando a utilidade ou o prazer findam. 
O terceiro motivo, no qual se baseiam as amizades mais duradouras, é a virtude de uma pessoa. "Eu gosto de fulano porque ele é bom". E este é o motivo mais "completo" porque a pessoa que é boa provavelmente também é útil e agradável.

Assim, resguardado o fato de que às vezes não temos nem ao menos contato com as pessoas com quem nos relacionamos no passado (por N motivos), o sentimento de amizade é duradouro porque é fundado na pessoa em si, em seu caráter e em sua bondade, que são imutáveis. É isso o que sinto em relação à minha amiga-irmã-da-vida-toda. Afinal, do amor ninguém foge.

Parafraseando Renato Russo "Uma menina me ensinou quase tudo o que eu sei...".

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