Sobre os "bastidores da Psicanálise"
A residência ampla e acolhedora, no número 20 da rua Maresfield Gardens, região oeste de Londres, foi a última moradia do criador da psicanálise. Transformado em museu, o espaço guarda mais que objetos pessoais dos antigos moradores – permanece ali um pouco da história de incontáveis analistas e analisandos.
MUSEU SIGMUND FREUD, LONDRES
Para muitos pacientes, e para boa parte do público em geral, o psicanalista é uma figura neutra, discreta, reservada, quando não enigmática, de quem se conhece muito pouco. O que tem certo fundamento. No passado, ao menos, muitos psicanalistas temiam o acting out – a expressão de conflitos emocionais, por meio de comportamento impulsivo – e acreditavam que a proximidade com o analisando favoreceria essa “passagem ao ato”. Além disso, alguns profissionais receavam contaminar o tratamento apresentando-se aos pacientes como pessoas comuns. Por causa disso ainda hoje é rara a possibilidade de observar a intimidade de um analista.
Pois é justamente essa oportunidade que nos proporciona uma casa-museu situada no número 20 da rua Maresfield Gardens, no distrito de Hampstead, em Londres. E não se trata da residência de qualquer analista: o morador foi ninguém menos que o criador da psicanálise, Sigmund Freud. Em 1938, depois que a Áustria foi anexada pelos nazistas, ele, relutantemente, deixou Viena, onde vivia e trabalhava (no famoso endereço, Bergasse 19), e transferiu-se com a família para Londres. A mudança foi penosa para o homem idoso e doente – lutando com um câncer, ele viria a falecer em setembro do ano seguinte. Na casa aprazível no noroeste da capital inglesa Freud pôde contar com um ambiente confortável e, muito importante, com o apoio da família. Moravam com ele a esposa, Martha, a cunhada Minna, a empregada, Paula Fichtl, e a filha, e também terapeuta, Anna. Extraordinariamente dedicada ao pai, ela continuou vivendo ali até morrer, em 1982.
O aposento que mais chama a atenção é, sem dúvida, o gabinete com a biblioteca – onde, mesmo exilado, continuou atendendo seus pacientes. O idioma não foi problema: ele falava bem inglês, ainda que com forte sotaque. (...) É no gabinete que está o divã analítico original, trazido da Bergasse 19. Muito confortável, tem almofadas de chenile e está coberto com um tapete persa ricamente colorido. Sobre a peça há outros tecidos orientais. Para quem já freqüentou consultórios psicanalíticos isto não deixa de chamar a atenção.Por exemplo, quando comecei minha análise, a regra entre os freudianos era atender num ambiente o mais neutro e despido possível. Mas isso, pelo jeito, não preocupava Freud – assim como não o preocupava manter o distanciamento dos pacientes. Quando um deles, o aristocrata russo Sergius Pankejeff, conhecido como “o homem dos lobos” (por causa do famoso sonho em que via esses animais encarapitados em árvores, sonho esse retratado num desenho exposto no museu), ficou financeiramente arruinado, Freud lançou uma espécie de campanha no círculo analítico para ajudá-lo. Ou seja, tratava seus pacientes, ou pelo menos alguns deles, de forma especial. E talvez o divã, com seus tecidos e tapetes, desse testemunho disso.
Tapetes e tecidos com cores fortes cobrem o divã trazido de Viena: pouca preocupação em manter neutralidade do ambiente de atendimento
O dono da casa era um leitor voraz. Sua biblioteca inclui livros de psicanálise, medicina, psicologia, ciências biológicas, filosofia. Ganham destaque autores como Charles Darwin, Jean-Martin Charcot e Richard von Krafft-Ebing. Como seria de esperar, são numerosos os textos sobre arqueologia. Mas ali encontramos também grandes obras literárias: Johann Goethe, William Shakespeare, Gustave Flaubert, Heinrich Heine, Nikolai Gogol, Anatole France. Freud dizia que, antes mesmo da psicanálise, poetas e ficcionistas já exploravam os meandros do inconsciente. Em Os dez amigos de Freud, o brasileiro Sérgio Paulo Rouanet estuda as obras prediletas do psicanalista – que, aliás, foi contemplado com o Goethe, famoso prêmio literário oferecido pela cidade de Frankfurt. Mas só uma parte de seus livros estão no museu; muitos foram adquiridos pelo New York State Psychiatric Institute e estão agora na Universidade Columbia, em Nova York. Outros foram doados para a Biblioteca do Congresso, em Washington.
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