Sobre a véspera do Dia dos Pais
Fiz um pedido errado no Ifood.
Eu não tomo refrigerante há alguns anos e mesmo assim pedi
uma garrafa para acompanhar meu gnocchi com almondegas neste sábado.
Eu não tomo refrigerante desde que resolvi barganhar com
Deus. Prometi que se ele mantivesse a vida do meu pai, mesmo diante da doença
grave com a qual foi diagnosticado naquele momento, eu entregaria a Ele meu
grande vicio da época e pararia de beber os quase dois litros de refrigerante
que consumia a cada dia.
E mesmo assim, sem nem perceber, pedi uma garrafa de soda
hoje.
O que veio a calhar porque na ânsia de fazer valer os
abusivos R$ 7 que paguei na garrafinha de 400ml, eu rapidamente pensei em um
modo de me livrar da culpa e transformar aquele refrigerante em um drink (desta
forma minha moral não ficaria abalada em consumi-lo para lidar com este dia).
Misturei licor com soda e aqui estou, com um teclado sob os dedos tentando anestesiar
toda a frustração.
Os últimos meses no trabalho tem sido uma droga, a situação
mundial é desoladora, a cada dia se vê mais uma triste noticia na TV e eu não
consigo parar de remoer meu relacionamento com meu pai na véspera do Dia dos
Pais.
Meu pai parece não
ficar satisfeito enquanto todos à sua volta não estiverem se sentindo
miseráveis (talvez tanto quanto ele?). Ele passou por bons traumas, desde a
perda do pai suicida, até a morte do irmão gay com AIDS nos anos 80 com apenas
27 anos (abafada até hoje por uma pneumonia).
Estas vivências são os parâmetros dele.
O histórico dele começou com minha mãe. Proibiu-a de
trabalhar e estudar ao se casarem, cometeu traições, ameaçou suicídio quando
foi descoberto, e ao ser perdoado, começou a convidar mulheres aleatórias pra
andar na garupa da moto dele sem o mínimo cuidado em esconder ou justificar
porque minha mãe, sem estudo, sem trabalho e com dois filhos pequenos nos anos
90 dificilmente o deixaria. Durante 30 anos ele a transformou na histérica
ciumenta, escandalosa e acomodada aos olhos de todos. Foram 30 anos até que ela
finalmente resolvesse se libertar e ir embora.
Na minha vida não foi tão diferente. Desde pequena ele
aprendeu a controlar pelo medo. Quando eu, adolescente rebelde, comecei a
questionar o que ele dizia, ele passou a controlar por privação. Depois por
chantagem. Hoje, com gritos, agressões verbais e outras psicológicas. Minha irmã
não aguentou por muito tempo e viu no casamento aos 25 anos uma forma de
escape. Separou-se em menos de 1 ano e
hoje vive e algum lugar que eu desconheço. Ninguém nunca sabe onde ela está,
exceto por raras ocasiões em que ela aparece para cumprir seu papel social, em
Natais ou aniversários.
Eu me lembro de dizer “eu te amo” pra ele no meu aniversário
de 15 anos e ouvir a resposta debochada de que eu estava querendo aparecer na
frente de todos. Quando, feliz por ter acessado meu boletim na faculdade e
constatado perto da 00h00 que tinha conseguido a média do último semestre para
me formar depois de 5 difíceis anos de graduação, gritei de felicidade e ao
invés de me dar parabéns, ele me mandou calar a boca porque já era tarde. Quando
chego cansada do trabalho ele me chama de preguiçosa. Quando começo a
desinfetar as compras ele me chama de paranoica. Se me percebe satisfeita por
qualquer motivo, arruma um assunto para me criticar. Por diversas vezes pensei
em deixa-lo sozinho, mas com a doença progressiva veio também minha culpa em ir
embora. E eu fui ficando para ajudá-lo. Para aproveitar a vida dele enquanto
posso. E agora na boca dele me tornei a solteira que ninguém quer, a que não
vai dar netos, com quem o sobrenome da família vai morrer.
Ele nunca me deixou faltar nada material e até fez seus
sacrifícios. Às vezes me sinto culpada por estar frustrada em relação a
ele. Em outras penso que a culpa de
algumas das minhas limitações pessoais é dele e encontro razão para todos os
sentimentos ruins que ele me desperta.
Eu pensei em beber aquele refrigerante, mas tenho medo de
brincar com Deus. Então disse a Ele que se misturasse a soda com licor, estaria
bebendo um drink e deste modo poderia manter a nossa barganha.
O licor na soda me ajudou a lidar um pouco melhor com a
minha frustação hoje. É como se eu tivesse matado um pouquinho meu pai. Mas
também o salvei.
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